A mulher raivosa

Ser mulher na sociedade em que vivemos é um jogo de sobrevivência

  • M
  • Mariana Paiva

Publicado em 9 de junho de 2024 às 05:00

Esses tempos tá rolando nas redes sociais uma brincadeira interessante: escolher três emoções que são as suas “Divertidamente” mais acentuadas. Tem Raiva, Ansiedade, Alegria, Medo, Nojinho, Ansiedade, Inveja, Tédio e Vergonha. Escolhi duas e fiquei ali pensando, depois de anos de ensino religioso na infância, de tanta palestra que vi sobre compaixão, se devia mesmo marcar o que tava querendo, mas marquei. Era Raiva.

É que nós, mulheres, somos ensinadas a sermos mansas. Nada de carros velozes, nada de “bateu, levou”, nada do barulho da rua. Guardadas as devidas exceções, somos incentivadas a brincar em casa, longe dos perigos noturnos, com os brinquedos espalhados na sala de casa. As cadeiras eram apartamentos de bonecas, casas de meninas que sempre estavam com os pais viajando pra fazer festinhas com as amigas. Tinha irmãs, cachorro, roupa de cama rosa, plantinhas. Era assim a vida inventada. Se tinha raiva? Tinha não. Na brincadeira, claro.

Como diz um sábio amigo meu, “coração dos outros é terra que ninguém passeia”. E aí que a gente sabe que a raiva ela mora também dentro da gente, apesar de tanta aula dizendo pra ser mansa, tanta coisa repetindo pra deixar pra lá. Imagina a gente, vivendo nesse mundo, vendo essas notícias, todo dia é uma conversa errada de arma nuclear, tem que sempre rezar pro governante não fazer uma bobagem que alague a cidade, o estado ou o país onde a gente mora. Pronto, falei. A gente vive assim. E quando vê acontecer sente o que? Raiva. Né pouca não, é muita.

Como também sente raiva a mulher que anda pela rua ouvindo gracinha por causa do corpo que tem, que não consegue chegar em casa depois de um dia cansativo de trabalho sem se sentir olhada de um jeito violento, ou pior, tocada, encostada, no transporte público. Como não sentir raiva? Ou então ocupar um cargo de liderança e ter todos os dias sua competência posta à prova, simplesmente por ser mulher, ainda que tenha qualificações muito maiores do que aqueles que a questionam. E aí? Como ser mansa?

A verdade é só a raiva pode com isso, porque é preciso reagir. Ser mulher na sociedade em que vivemos é um jogo de sobrevivência, e olhe que não dá pra ir chorar no banheiro toda vez que acontece alguma coisa, ou então era melhor levar logo o travesseiro e a coberta pra lá. Talvez seja por isso que as filas dos banheiros femininos públicos estejam sempre maiores: porque vez por outra a gente usa as cabines para dar uma choradinha, longe dos olhares de quem nos ofendeu, pra não dar ousadia (isso jamais!). Pelo menos a gente bota pra fora e não adoece, porque choro preso é capaz de matar, como dizem as pessoas antigas. E aí enxuga as lágrimas, manda a pessoa pra casa da “lá ela” e segue vida, como se nada tivesse acontecido. Ou não é assim que se vive?

Não devia ser assim, mas é. Pelo menos é como se vive nesse mundo, aqui e agora, de acordo com a palavra chique que os alemães inventaram pra isso: zeitgeist. Espírito dos tempos. A mulher dessa época não é mansa porque não pode ser, porque seria engolida, suprimida, apagada. Isso quer dizer ser um pedaço de cavalo? Não. Uma mulher inteligente sabe que amor e raiva são combustíveis essenciais pra sua sobrevivência nesse mundo, pra ter o respeito que precisa. E pra não fugir do clichê, é sobre isso e tá tudo bem.

Mariana Paiva é escritora, jornalista, idealizadora da Awá Cultura e Gente, head de Diversidade, Equidade & Inclusão do RS Advogados, e doutora em Teoria e História Literária na Unicamp