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Rafson Ximenes
Publicado em 16 de setembro de 2024 às 05:00
Conta o mito que muito do atual direito penal nasceu do julgamento de um crime bárbaro. Orestes, um jovem grego, é acusado de matar a própria mãe. Ele confessa, porém alega que não tinha opção, pois acreditava estar cumprindo o dever de vingar a morte do pai que teria sido tramada por ela. Embora estivesse clara a autoria, naquelas condições haveria realmente um crime? >
Era um caso tão complexo que a Deusa Atena optou por não decidir sozinha e criou um conselho de jurados em número ímpar, mas antecipou que se os outros empatassem, ela desempataria a favor do réu. Assim, teriam se originado duas formas de proteção dos acusados: o Tribunal do Júri e o princípio de que a dúvida sempre deve favorecer o réu, pois o que se presume é a inocência e não a culpa.>
O júri representa uma oportunidade para o acusado de ser julgado por pessoas parecidas com ele, que consigam entender melhor a acusação de acordo com os costumes e valores sociais. É possível que o júri absolva o réu, ainda que na letra fria da lei, ele tenha praticado um crime. Isso não quer dizer que o júri não erre, por isso, é possível haver recurso contras as suas decisões. O júri não pode condenar quando a lei impõe absolvição.>
A presunção da inocência é o reconhecimento de que é preferível deixar de punir dez culpados a punir injustamente um inocente. A aplicação de uma pena pode destruir uma vida, mas não reconstrói nada. Se um inocente é castigado, até os desejos de justiça ou vingança são traídos. Logicamente, não pode haver justiça em uma pena aplicada injustamente. >
Ao mesmo tempo que os gregos antigos (ou seria até antes deles?), outros povos, como os africanos, já construíam seus mitos sobre o peso que recaía sobre todo um povo, quando alguém era punido por um crime que não cometeu. >
Todas as principais legislações modernas seguiram as lições ancestrais. Nossa constituição incluiu o o Tribunal do Júri como direito fundamental e individual dos acusados. Também afirma que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Em outras palavras, todos nós, se formos acusados de um crime, devemos ser tratados como inocentes até o fim do processo. Um processo somente chega ao fim após o julgamento do último recurso, que confirma a validade da sentença.>
No entanto, contrariando textos expressos e princípios milenares consagrados pela Constituição Federal, os Tribunais têm constantemente tomado decisões que mitigam ou anulam a presunção de inocência. A mais recente delas aconteceu quando o Supremo Tribunal Federal decidiu que após uma sentença condenatória proferida pelo júri, a punição pode começar imediatamente, sem aguardar o resultado dos recursos.>
O STF não decidiu pela possibilidade de prisão imediata quando é proferida uma sentença condenatória no júri. Isso já era possível, se presentes as condições da prisão preventiva. Tratava-se de prisão preventiva ( provisória) porque o processo não havia acabado. O réu ainda poderia ser absolvido, demonstrando que a decisão foi equivocada. >
O Tribunal decidiu agora pela possibilidade de aplicação antecipada da pena. Decidiu que, mesmo havendo dúvida sobre o resultado final, o réu já deveria ser tratado como culpado. A maioria dos ministros escolheu ignorar solenemente a Constituição para aplicar exatamente o contrário do que ela determina. O Tribunal do Júri, de direito do acusado, foi transformado em vantagem para a acusação. A dúvida passou a prejudicar o réu. >
O supremo, portanto, não se limitou a declarar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma lei, ou apontar qual a melhor interpretação dela de acordo com a constituição. A Corte declarou que não gostava do que a lei e a Constituição diziam e resolveu legislar, criando a sua própria lei e a sua própria constituição. Infelizmente, não foi a primeira vez que os Tribunais desconsideraram e subverteram as normas na área penal para prejudicar os réus e afrontar a presunção de inocência. >
Não existe reparação possível para a perda de um ente querido, assim como não existe reparação para o tempo de vida perdido em uma prisão. Mas, aparentemente, o tempo de vida das pessoas pobres que costumam ocupar os bancos dos réus não é muito valorizado pelos julgadores.>
Uma coisa comum na mitologia é que todos os que desobedecem as leis divinas ou se comparam aos próprios deuses, acabam atraindo desgraças para si e para todo o seu povo. No direito penal, algo semelhante acontece quando um julgador se considera mais sábio que a Constituição e descumpre, reescrevendo, o seu texto. Não há outro resultado possível para os julgamentos penais que desobedecem e desafiam os direitos fundamentais, além da tragédia. >
Orestes teve sorte ao ser julgado por Atena. Parece que a presunção de inocência virou um mito. >