Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Mariana Paiva
Publicado em 6 de setembro de 2025 às 08:00
Parece um mundo invertido de Stranger Things mas não, é só mais um dia de Brasil. A gente faz o que pode pra escapar das notícias que deixam com inveja a melhor história de ficção. Dos mesmos criadores desse bololô, agora pessoas pardas - essas que os cartórios convencionaram botar nome de envelope e que descendem de pessoas negras escravizadas - não querem mais ser parte da negritude. Me deixe, viu? >
Meu avô preto morreu tendo certeza de que era moreno. Mas isso era outro tempo, outra consciência, mesmo que hoje eu olhe pra trás e veja que, estudado como era, ele podia ter pensado isso de outra forma. É assim que foi, entretanto. Preta, pra ele, era qualquer outra pessoa. Ele se dizia moreno apesar dos traços, do cabelo, da pele. Do racismo que sofria. Podia até se enganar, mas era só isso mesmo: a sociedade nunca teve qualquer dúvida. Moreno nunca existiu por aqui. Ou era negro ou era branco. E ele era negro. >
Não é como se desse pra escolher, a uma altura dessas. 2025 já no calendário, tanta conversa, discussão, poxa, tanto livro publicado. Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Patricia Hill Collins, fica até feio defender pardo como uma categoria separada. Aliás, como é que poderia ser, uma vez que gente parda (como eu, inclusive) descende de um processo histórico de violência contra um povo negro? Pois é sobre isso a conversa. >
Simplesmente não dá pra abrir outra gavetinha. Sorry, mas não tá rolando. Porque todos os avanços que tivemos em relação ao racismo no Brasil foram à base de muito esforço de um movimento negro que não arredou pé nenhum dia sequer, de gente entregando a própria vida à causa, de muitas pessoas pensando e teorizando sobre a questão do racismo. Tudo uma construção de muitas décadas para a gente agora ter que ficar lidando com caça-like de rede social. Me faça uma garapa, viu? >
A quem serve separar os pardos da negritude? Ao racista. Enfraquece o movimento antirracista, cria um “nós contra eles” que desvia a atenção do que é realmente importante. Porque quem é racista não hesita nem por um instante em gritar uma ofensa baseada em raça num estádio de futebol lotado ou numa discussão perdida. Você também leu essas notícias que eu sei. Todo dia tem. >
Quando a pessoa parda entra no conjunto da negritude é exatamente porque ela passa por experiências semelhantes. Não se trata somente de cor de pele, mas também das violências que são dirigidas a ela. Vamos falar de dados? Segundo o Atlas da Violência 2024, a maior parte das vítimas de homicídios no Brasil é disparada de jovens pardos e negros. Estatística é bom pra gente dimensionar mas nem precisa: abra aí qualquer jornal que você vê. Não tem disfarce. É uma aula de história a céu aberto: a violência como um fruto macabro da escravidão. >
Sabendo de tudo isso, fica meio esquisito o movimento da parditude que não quer fazer parte do mesmo grupo que os negros. Tá, não quer ser negro, tipo meu avô não queria. Mas agora com teoria pra embasar e em pleno 2025, o que torna tudo mais surreal: veja só se é o caso de gente parda não querer ser negra. Quer ser morena de angola, morena-jambo, mulata, doce de leite, caramelinho. Tudo menos uma pessoa negra. Está passando na sua rua o carro do retrocesso. Parece uma coisa assim meio, como é que se diz? Racista…>
Mariana Paiva é escritora, jornalista, professora, mestra pela Ufba e doutora pela Unicamp>