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Publicado em 22 de maio de 2025 às 19:12
Estava sonhando com aquele momento. O aniversário de um ano da minha filha celebrado em pleno mês das crianças. Ignorei as contas apertadas e criei coragem para entrar no buffet infantil Terra do Nunca. Quero uma festa de princesa! Para quantas pessoas? Cem crianças. Entre a escolha do tema e opções de doces e salgados, a dona do espaço me reconheceu. Você não é uma das sócias da academia para mulheres? Eu mesma! Achava que você só tinha meninos. Tenho uma menina caçula. Está no carro. Vou buscar para você conhecer. Voltei com Maria Preta no colo e não esqueço o semblante de espanto. Você está fazendo orçamento para uma festa de boneca?
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Corta! Também nunca esqueço o dia que decidi materializar meu sonho de ser mãe de menina. Tinha pouco tempo de separada. Estava indo curtir um feriado com minha mãe, meus dois filhos ainda pequenos e uma amiga do coração. Íamos para o Litoral Norte e eu parei em um shopping. Deixei todos no carro, entrei na loja e saí de lá com Maria Preta nos braços. Não era reborn. Era linda, preta, cheirosa e ainda falava algumas frases. Estava tão apaixonada que a levei no colo para a vila da Praia do Forte e fui parada por pessoas preocupadas com a bebê descalça, aquela hora da noite. Riam quando percebiam a brincadeira. >
Não vou mentir que já sonhei em ter um bebê reborn. Só ficou no sonho porque o preço impediu a compra. No mesmo mês em que o IBGE divulga que o número de nascimentos na Bahia atinge o menor nível em 32 anos, assistimos o bombardeio de notícias sobre bebês reborn. Sobre mulheres que disputam bonecos que parecem de verdade em batalhas judiciais, que insistem que sejam atendidos em UPAs e até tenham direito a cerimônia de batismo. São casos pontuais, mas a repercussão na mídia e as trends nos fazem acreditar em um surto feminino coletivo. >
Em tempos de fake news, maternidade reborn soa como algo abominável. No alvo das críticas, mulheres sendo perversamente julgadas e ridicularizadas. O bebê não chora, não acorda de madrugada, não golfa, não suja fraldas... É símbolo de uma relação idealizada. Uma maternidade com filtro, no controle. Por mais absurdos que possam parecer os fatos noticiados, enxergo nas entrelinhas um sinal de cuidado. Que vazio essas bonecas ocupam na vida de alguém? >
Reborn significa renascimento. Longe de julgamentos rasos, que essa repercussão possa ajudar a perceber sofrimentos, acolher sonhos. Entre a fantasia e a realidade, há histórias únicas. Por trás de uma boneca perfeita, pode existir o ideal de maternidade em farrapos. Colos vazios com o coração transbordando dor, amor. Um bebê reborn pode simbolizar uma luta interna, um atravessamento. Um luto, seja por aborto, perda gestacional, um natimorto ou morte precoce de um filho. O ato de cuidar - dar banho, trocar roupas, embalar nos braços - ativa áreas do cérebro ligadas ao afeto e ao vínculo, promovendo conforto. E, com o tempo, ressignificado. >
Ter um bebê reborn pode ser a forma de mulheres, tendo ou não filhos, manter vivo o desejo latente de gestar e maternar. Pode amenizar o sofrimento de mães que se sentem culpadas por alguma falha no processo. Pode ser o grito silencioso de mulheres |com útero ferido, colo ou ninhos vazios, mesmo quando os filhos cresceram e ganharam o mundo. Ou simplesmente, o desejo genuíno de quem, na infância, não teve o direito de brincar de boneca. >
Não existe uma explicação única, os significados da relação com bonecos hiper-realistas que imitam recém-nascidos precisam ser tratados com mais respeito e afeto. E, nos casos extremos, com atenção de profissionais especializados. Antes que o maio furta-cor – mês dedicado à saúde mental materna - se despeça, que tal olhar para mulheres com menos misoginia e mais empatia? A tentativa de tornar o afeto uma patologia pode dizer bem mais sobre uma sociedade machista do que sobre quem brinca. Afinal, o que ainda clama por nascer? No meu caso, adotar uma boneca significava a possibilidade de me reconstruir. >
E, sim, o aniversário de Maria Preta na Terra do Nunca aconteceu. Transformei a festa em uma ação social. Convidei alunas da academia a adotarem cartas com o presente sonhado de cem crianças de um orfanato de Lauro de Freitas. Meninos e meninas de realidades sociais bem diferentes viveram uma noite mágica, com diversão e guloseimas. Todos os convidados especiais voltaram para casa com um presente. Algumas crianças ganharam tablets, bicicletas. O teclado, que só acumulava poeira na casa de minha mãe, fez nascer um núcleo musical na instituição beneficiada. Difícil foi explicar para meu filho caçula, no ano seguinte, que a festa dele não podia ser também na Terra do Nunca. Mas a de Maria Preta você fez lá. Minha esperança é que ele leia esta crônica e entenda como a fantasia se tornou realidade.>
Fernanda Carvalho é jornalista, escritora, autora do Livro A Luz da Maternidade – Relatos de Parto sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas>