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Rafson Ximenes
Publicado em 21 de abril de 2025 às 05:00
Em um dos mais conhecidos episódios da série Black Mirror, Waldo, um urso azul de um desenho animado politicamente incorreto fica famoso ao constranger um tradicional parlamentar com ofensas e piadas infantis. Então, seus produtores inscrevem o personagem para concorrer a um cargo político. A campanha do boneco é um sucesso porque suas agressões criam imagem de rebeldia contra o sistema. Ele soa antipolítico, embora seja essencialmente político. A figura animada esconde não apenas o vazio de ideias, mas principalmente a violência e a identidade de quem a promove. >
Embora, espero, jamais venhamos a ter a candidatura de um animal falante, a prática da ficção, política sem rosto, tem base no mundo real. Faz parte de uma estratégia cujo objetivo inicial é desmoralizar e destruir tudo o que mantém quaisquer resquícios de estabilidade, razoabilidade e seriedade na sociedade. Por isso, os alvos são aqueles considerados “políticos tradicionais”, mas também as instituições e os cânones da arte e da ciência. É uma guerra contra a racionalidade e a razoabilidade. Sob a máscara de transgressão, esconde-se o mais completo reacionarismo. Tem-se o paradoxo dos “revolucionários” conservadores. Não por acaso, a sua ascensão coincide com a ascensão pelo mundo das correntes políticas de extrema-direita.>
Há, porém, um aspecto ainda mais perigoso e preocupante do que o uso dessa estratégia em campanhas e a própria série não esquece de abordá-lo. Em algum momento, o personagem, ou principalmente aqueles que estão por trás dele, vencem as eleições. O autoproclamado revolucionário, que é retrógrado, violento e se esconde atrás de máscaras para agredir, continua agindo com os mesmos métodos, mas agora para silenciar quem questiona as instâncias de poder. A violência atinge níveis ainda maiores. Talvez seja o ápice da covardia política.>
Historicamente, regimes autoritários usam entes informais para inibir o surgimento de questionamentos sem “sujar as mãos”. Assim, quando a violência for tão grande que as pessoas superem o temor de apontá-la, os seus promotores podem fingir que não têm nenhuma relação com ela, que nem sabiam da sua existência, ou que ela é “espontânea”. Antigamente, a brutalidade era física, exercida por grupos paramilitares. Hoje, ocorre por meio de redes sociais, como whatsapp, Twitter, Instagram. O antigo engraçadinho da internet assume de vez o papel de soldado a serviço da tirania.>
As redes sociais são cada vez mais usadas como meio de agressão e o seu uso é apontado como gerador de inúmeros distúrbios psicológicos e causa do aumento de taxas de suicídio. As pessoas se aproveitam da possibilidade de anonimato da internet para criar ondas de constrangimento, sempre com um manto de falsa irreverência. Assim como cenas de violência nos atraem, a agressividade verbal consegue chamar a atenção e criar engajamento. No século XXI, perfis anônimos e grupos de whatsaap de agitação são os instrumentos usados pelos regimes autoritários para espalhar informações falsas e estimular os linchamentos digitais. Em ambos os modelos o fim é o mesmo: produzir medo e silêncio.>
Em outra série da Netflix chamada Adolescência, é feita uma pergunta de difícil resposta para quem não usa redes sociais como instrumento de trabalho: “Por que você tem uma conta no Instagram?” O uso dessas redes para a prática de violência política faz surgirem outras questões: Por que você continua seguindo perfis dessa espécie? Por que você ainda respeita ou apoia políticos ou movimentos que se valem deles?>
Quem se vale de estratégias políticas violentas não tem qualquer compromisso com a democracia, ou com melhorias nas condições de vida dos outros. Somente vê o próprio interesse. Não terá nenhum pudor de usar todo tipo de violência disponível contra qualquer um que se coloque no caminho, inclusive contra você. Os Waldos do momento em que vivemos são responsabilidade dos seus promotores. Mas cabe a cada um refletir se quer ser cúmplice deles.>
Rafson Ximenes, defensor público>