O politicamente correto e o zig no Carnaval de Salvador

Numa cidade cuja população tem 80% de pessoas negras, os ambientes do politicamente correto são povoados por pessoas brancas ou de pessoas negras que querem se distinguir das outras pessoas negras

Publicado em 10 de fevereiro de 2024 às 06:00

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Artigo Crédito: Arte CORREIO

O Carnaval de Salvador está sempre se reconfigurando, seja pela emergência de novos estilos musicais, coreográficos e plásticos, seja pela afluência de novas dinâmicas de espetáculo. Nos anos 90, a Timbalada descontinuou o contexto marcado pelos afros consolidados. A sucessão de perfis singulares como o Harmonia, próximo do samba tradicional do Recôncavo, e Márcio Vítor, incorporando efeitos sonoros então inusitados, sinaliza a heterogeneidade das mudanças. Para lotar o Maracanã com um repertório composto na maior parte de sucessos de Axé Music, Ivete não é mais a vocalista da Banda Eva. O tipo de pagode que produzimos aqui, que hoje tem Leo Santana no topo, é um desdobramento da música baiana de verão e Carnaval, ainda que não seja chamado de Axé. Quer formar uma ideia da riqueza da multiplicidade? Sinta a apoteose de Seu Nelson Rufino no Amor e Paixão, aos 81 anos.

Na contramão do movimento interativo do Carnaval, que mesmo numa cidade tão desigual e tensa consegue aproximar e/ou misturar setores díspares em termos etários, étnicos e de classe, instala-se cada vez mais fortemente o vetor do politicamente correto. Está associado à afluência crescente de turistas claros e intelectualizados e à centralidade que os meios eletrônicos – principalmente o zap – vêm alcançando entre os adolescentes e jovens, inclusive os mais pobres e menos escolarizados. Isto vai em direção oposta ao Carnaval como experiência do riso, do prazer, da mistura, do susto, do medo, do desejo da experiência da diferença. 

Esses agentes, cada vez mais pautados nos cânones de movimentos norte-americanos, estão quase sempre ocupados em definir o que está correto, como se deve falar, que termos seriam apropriados ou anatematizados. Sua linguagem é próxima daquela de movimentos de afirmação étnica ou de orientação afetiva, feministas e ambientalistas, mas sem pautas de atuação muito além das palavras e do controle sobre o dizível. Escolhem locais e ocasiões em que a tirania léxica e semântica plasma o distanciamento social, como se percebe na Lavagem da Preguiça, nas festas do Santo Antônio e na Mudança do Garcia.

Tais coletivos passam boa parte das festas discutindo e cobrando posturas de si e dos outros. Poucas risadas; sorriem. São cada vez mais homogêneos quanto à idade, à cor, ao modo de falar. Numa cidade cuja população tem 80% de pessoas negras, os ambientes do politicamente correto são povoados por pessoas brancas ou de pessoas negras que querem se distinguir das outras pessoas negras, como na praia do MAM. Pessoas bonitas e bem dispostas que, quando não estão condenando, são amáveis e divertidas, boas companhias.

Durante décadas, criticamos a segregação das cordas dos blocos. Isto vem sendo relativamente amenizado com a multidão que se forma em torno do Navio Pirata ou em eventos como o Fuzuê, o Furdunço e o Pipoco. Por outro lado, a segregação se faz nas cabeças, pela pretensão da pureza ética e política, que se manifesta no policiamento do vocabulário. Presenciei muitas vezes contendas sobre a utilização de termos como “índio” ou “morena”. Essas pessoas se controlam e tentam controlar as outras o tempo quase todo. Têm horror a tudo que possa parecer “apropriação cultural” e pouco se misturam. Os núcleos mais radicais fazem Carnaval sem folia e sem loucura; com certezas e alegria comedida – e correta...

A você que me lê, sugiro uma estratégia para enfrentar isso. É uma instituição tradicional da nossa história festiva: o zig now. Dê o zig! Não perca seu Carnaval discutindo, distinguindo, discernindo como se estivesse num debate ou numa reunião. Misture-se, perceba a maravilha que é perder-se, mesmo com todas aqueles sinalizadores. Participe da construção de uma cidade melhor com a veemência e a leveza de Jéssica Senra, sem esquecer que o êxtase não é racional; vem das emoções, da pândega, da galhofa, da brincadeira. Dê o zig em tudo isso e curta o Carnaval!

*Milton Moura é ilheense, morador do Garcia e professor titular aposentado de História da Universidade Federal da Bahia (Ufba). É pesquisador do Carnaval de Salvador e das Festas de Independência em Salvador e Itaparica e das diferenças culturais.