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Sexo e gênero: o que significam e por que discutir esse assunto virou algo tão perigoso

Entenda como a confusão entre conceitos se espalhou pelo debate público e passou a produzir tensão na formulação de políticas, reivindicação de direitos e relações sociais

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 20 de dezembro de 2025 às 12:29

esses termos vêm passando por disputas de sentido e deslocamentos conceituais relevantes
Esses termos vêm passando por disputas de sentido e deslocamentos conceituais  Crédito: Reprodução

De uns tempos pra cá, falar sobre “sexo” e “gênero” se tornou uma atividade de risco. Independentemente da posição adotada, sempre há alguém pronto pra rebater de forma violenta, puxando “cancelamentos” e similares. Não há um lugar seguro. De repente, o tema entrou numa zona de hipersensibilidade. Agora, até perguntas ou comentários simples são tratados como se fossem ataques. Em (e por) ambos os lados. Ainda assim - ou justamente por isso - é um debate que precisa ser feito em público e não apenas por “especialistas”. Precisamente porque, conforme você sabe, não são só os “especialistas” que estão sendo agredidos - e, repito, por ambos os lados - inclusive em espaços cotidianos, como banheiros públicos de academias de bairro.

Mas quais são esses “lados”? O que cada um deseja e em que ideias se amparam? Sobretudo, por que discutir esse assunto virou algo tão perigoso? Convido você a ler e pensar, com honestidade. Não para “concluir”, mas para começar a perceber que essa “briga” não é tão simples quanto a sua bolha (seja ela qual for) faz parecer na sequência de posts que povoam as suas redes sociais. Para tentar “furar as bolhas”, vamos começar investigando o que significam as palavras “sexo” e “gênero”.

Em em 1787, Mary Wollstonecraft  escreveu “Desafortunada é a situação das fêmeas”, no livro Thoughts on the education of daughters (“Pensamentos sobre a educação das filhas”) – um dos primeiros escritos em que uma mulher abordava a situação feminina na Europa por Reprodução

“Sexo” é amplamente interpretado como uma categoria biológica e material. Refere-se a características corporais como cromossomos, órgãos reprodutivos, genitália, produção hormonal e funções ligadas à reprodução. O “sexo” de cada pessoa (masculino ou feminino) está ligado a características físicas e reprodutivas como gônadas, organização do sistema reprodutor, produção hormonal e composição cromossômica. Esse conceito - desse modo - é utilizado de forma consistente pela medicina, pela biologia e pela demografia para fins diagnósticos, estatísticos e de políticas públicas.

Mapear o percentual de cada “sexo” na população tem sido indispensável, ao longo do tempo, para o estudo de doenças, para a formulação de políticas de saúde pública e para a produção de estatísticas confiáveis sobre violência, por exemplo. Também é o “sexo” que estrutura, historicamente, a divisão reprodutiva do trabalho e a consequente violência masculina contra mulheres. Isso é amplamente documentado por pesquisas históricas e sociológicas.

Mesmo reconhecendo as raríssimas variações biológicas - como as condições intersexo - o "sexo" continua sendo uma categoria objetiva e mensurável, indispensável para mapear riscos, necessidades e desigualdades concretas na maioria absoluta da população mundial. Então, em termos simples, o "sexo" diz respeito ao corpo. Um corpo feminino (ou masculino) terá seu “sexo” identificado em qualquer tempo ou lugar do planeta. Inclusive múmias e ossadas investigadas pela medicina legal ou pela arqueologia podem ter o “sexo” identificado pela observação óssea, sem necessidade de análise genética. Até o momento, não há como alterar "sexo", enquanto categoria biológica, em seres humanos. 

“Gênero”, por sua vez, é uma categoria social e cultural. Refere-se aos papéis, expectativas, normas, comportamentos e códigos construídos a partir da leitura social do “sexo”. Por exemplo, a frase “meninas vestem rosa” expressa uma leitura social do corpo do “sexo” feminino. Ou seja, ainda que nada em corpos do “sexo” feminino indique afinidade com essa cor, socialmente associamos a cor rosa a mulheres. Note que essa (assim como outras) associação varia conforme época e cultura. Muitas vezes, varia até entre indivíduos da mesma época e cultura. 

Foi o conceito de “gênero” que permitiu ao feminismo demonstrar que submissão feminina não é natureza e que executar tarefas domésticas não é uma vocação biológica de mulheres. Principalmente, que a maternidade não é destino inevitável, mas uma possibilidade para corpos do “sexo” feminino. Masculino e feminino, no sentido de “gênero”, não descrevem corpos, mas expectativas sociais, normas de conduta e expressões culturais historicamente associadas a homens e mulheres. O “gênero” explica como a sociedade interpreta, regula e hierarquiza pessoas a partir do “sexo”.

Mais recentemente, o conceito de “gênero” passou também a ser utilizado para nomear experiências subjetivas de identidade. Passamos a reconhecer que pessoas podem, por exemplo, nascer em um corpo do “sexo” masculino, mas se perceberem como do “gênero” feminino e isso não é um problema. Esse uso é socialmente relevante e juridicamente reconhecido em diversos contextos. Ele expressa a liberdade de o indivíduo viver experiências existenciais não necessariamente determinadas pelo “sexo”.

Durante algum tempo, “sexo” e “gênero” funcionaram como categorias complementares. O “sexo” explicava a materialidade do corpo e o “gênero”, sua organização social. Com o avanço do que se convencionou chamar de “teoria queer”, o conceito de “gênero” passou a reivindicar funções originalmente atribuídas ao “sexo”, inclusive em documentos oficiais e políticas públicas, onde a autodeclaração identitária passa a substituir critérios biológicos em determinados contextos.

É nesse ponto que surge a pergunta central que divide o debate: uma categoria baseada na identidade subjetiva (“gênero”) pode substituir uma categoria baseada na materialidade corporal (“sexo”) em todos os casos? Essa pergunta é elaborada, de muitas maneiras, todos os dias. Bilhões de pessoas respondem que sim. Outros bilhões respondem que não. Ambos os lados apresentam bibliografia, referências, vivências e legitimidade para opinar. Essa questão impacta políticas públicas, estatísticas de violência, saúde, esportes, sistema prisional e, especialmente, a definição legal das categorias "homem" e “mulher”. É aqui que o conflito se instala.

De forma simplificada, o embate atual ocorre entre duas perspectivas. A perspectiva materialista feminista relembra que mulheres são oprimidas com base no “sexo” e reivindica que políticas públicas, espaços segregados e estatísticas devem manter esse critério. A perspectiva queer argumenta que “sexo” e “gênero” são impactados por normas sociais e que a identidade de gênero deve prevalecer como critério de acesso a direitos e territórios. As duas perspectivas são apoiadas por bilhões de pessoas. Muitas delas não conhecem qualquer teoria, mas têm a legitimidade de vivências cotidianas.

A essa altura, já está fácil concluir que reduzir esse debate a “ciência versus delírio” ou “progresso versus atraso” não é intelectualmente honesto. Também que o centro do debate não é a liberdade individual de se expressar, mas o uso adequado - ou inadequado - de conceitos em políticas coletivas. Isso, muito além de convivência, envolve orçamento, proteção jurídica e definição de grupos vulnerabilizados.

Acho óbvio que a eliminação do marcador “sexo” compromete dados estatísticos e fragiliza a categoria “mulher” enquanto grupo historicamente oprimido. Por outro lado, tratar a identidade de “gênero” como fraude ou capricho apaga violências reais sofridas por pessoas trans. Curiosamente, em ambos os extremos, o grupo “pessoas transexuais” acaba invisibilizado politicamente. Na primeira opção, o grupo some das estatísticas por se diluir na simplificação dos conceitos “mulher” e “homem”. Na segunda opção, o grupo é massacrado pelo preconceito social.

Não há uma solução simples. Digam o que disserem, “sexo” e “gênero” não são a mesma coisa, não cumprem as mesmas funções e não produzem os mesmos efeitos. Justamente por isso, um não substitui o outro sem gerar perdas reais, inclusive para pessoas trans. Em determinadas situações, o critério material do “sexo” é decisivo; em outras, a identidade de “gênero” é o que garante dignidade, proteção e existência social. Deixar de reconhecer a importância de qualquer um dos conceitos não resolve o problema, apenas o empurra para decisões improvisadas, mal fundamentadas e, na maioria das vezes, injustas. Tem sido o caso.

Pessoas trans compõem um grupo múltiplo que existe exatamente nesse intervalo entre “sexo” e “gênero”. Não como erro conceitual, mas como realidade humana concreta, com complexidades e belezas específicas. Negar essa existência plena - inclusive com a ambiguidade que ela significa - é uma violência que tem sido cometida por "ambos os lados". Reduzir essa existência a expediente retórico em disputas políticas também é violento. Nenhum grupo vulnerabilizado se fortalece quando tem as próprias características negadas, em nome do que pode parecer uma solução "mais fácil". Pessoas transexuais são indivíduos  cujo "sexo" não coincide com o "gênero". Grosso modo, essa é a definição. Essa é a complexidade e a beleza com a qual teremos que aprender a lidar em todos os âmbitos, desde a medicina até a burocracia mais elementar. Tanto falamos em diversidade, mas, pelo jeito, nem sempre conseguimos identificar onde, exatamente, ela está.

Talvez o que tenha tornado esse debate tão perigoso não seja o tema em si, mas a incapacidade coletiva de sustentar essa complexidade, de observar e ajustar o discurso à realidade dos fatos, em vez de tentar fazer o contrário. Inclusive dentro da academia. Pensar exige mais do que escolher lados. Debater é algo mais sofisticado do que demonizar pessoas e pesquisas apenas porque elas nos mostram que as coisas não são "tão simples assim". Precisamos de rigor, responsabilidade e disposição para aceitar que a realidade não cabe inteira em slogans. Se o debate público quiser voltar a produzir justiça - e não apenas vencedores momentâneos se alternando nas redes sociais -, será preciso trocar gritaria por pensamento e medo por responsabilidade. Pode ser o espírito natalino, mas hoje estou acreditando que podemos ser capazes. Até 2026, amizade. Saúde, paz, juízo e força na caminhada.

Por @flaviaazevedoalmeida