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Feminicídio: por que não conseguimos evitar o único crime que é anunciado em 100% dos casos?

Até o poder público - que é tão eficaz em deflagrar operações cinematográficas - no caso da violência masculina contra mulheres, finge não entender nada

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 6 de dezembro de 2025 às 13:00

AVuilência masculina contra mulheres
Feminicídios sempre são anunciados Crédito: Made with Google AI

O feminicídio é o único crime hediondo cuja escalada de violência é meticulosamente comunicada, em todos os casos, passo a passo, antes do desfecho fatal. Há, inclusive, manuais e o assassino nunca falha em cumprir todas as etapas. Então, em tese, seria fácil evitar. Sim, seria. Isso se não tivéssemos a macabra associação entre a conivência coletiva estrutural e um sistema de justiça - feita por homens e para homens - que ainda protege a posse masculina sobre mulheres como um conceito sagrado e ancestral.

Mais um efeito disso é que a tragédia da violência masculina contra mulheres atingiu um novo patamar de urgência em 2025, com o Brasil ultrapassando a marca de mil mulheres assassinadas por feminicídio apenas neste ano. São quatro mortes por dia. Considerando subnotificação, sabemos que é muito mais e não menciono aqui o drama das que sobreviveram depois de agressões. Esta estatística diária de fracasso demonstra que ninguém leva o aviso a sério. Nem as mulheres, nem os vizinhos, nem as famílias e muito menos o Estado brasileiro.

O assassinato, que é a manifestação mais extrema da dominação, nunca é um evento isolado, mas o ponto culminante de uma história de terror na qual a perversidade começa na escolha do cenário. O ambiente doméstico é, justamente, onde o enredo nasce e se desenvolve. Para mulheres que vivem com homens, a casa é o lugar mais perigoso. No primeiro semestre de 2024, cerca de 60% dos feminicídios consumados ocorreram na casa da vítima ou em local compartilhado com o agressor, segundo o Monitor de Feminicídios no Brasil (MFB) do LESFEM.

Vítimas e assassinos têm perfis bem definidos. As vítimas são pessoas do sexo feminino. Os algozes são, em 97% dos casos, pessoas do sexo masculino, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Eles não são desconhecidos. Quase 80% dos crimes são cometidos pelo parceiro íntimo (41,9% dos consumados, de acordo com o MFB/LESFEM) ou pelo ex-parceiro íntimo (23,4% dos consumados). O instrumento mais utilizado não é uma arma sofisticada de crime organizado, mas sim a arma branca (faca, foice, canivete) ou objeto contundente em 48,1% dos casos consumados, segundo o MFB/LESFEM. A escolha da arma também reflete a intimidade.

José Américo de Almeida Rocha Neto foi condenado pelo feminicídio de Síntia Taís Freitas dos Santos por Reprodução

As motivações desse crime, tipificado pela Lei nº 13.104/2015, são puramente assentadas no desejo de dominação de pessoas do sexo masculino sobre pessoas do sexo feminino. O assassinato ocorre por "razões da condição do sexo feminino", o que significa o menosprezo e a discriminação à condição de mulher, seja na vida doméstica ou em posições de poder. Falhamos coletivamente ao permitir que essa lógica de dominação se fortaleça, de muitas maneiras, fora e dentro da lei.

A misoginia não vem do nada nem é alimentada por “vozes das cabeças” ou pela “genética masculina”. Há algum tempo, ela é ativamente alimentada por um ecossistema digital. Ideologias como a "Red Pill" disseminam o desprezo, a aversão e o controle sobre as mulheres, para milhões de homens de autoestima problemática. A relação desses grupos com o aumento das taxas de violência masculina contra mulheres é direta. Todo esse conteúdo perverso, despejado pelos “coaches” da “machosfera” faz com que o homem violento não se veja como "criminoso comum", mas como um executor da ordem, do “bom” e do “correto”. Erradas estão as mulheres que "provocaram". Claro.

Está tudo explícito: apologia ao crime, provas, modo de operar e resultados. No entanto, até o poder público - que é tão eficaz em deflagrar operações cinematográficas - no caso da violência masculina contra mulheres, finge não entender nada. Nem quando é explicitamente solicitado. Por exemplo, a ferramenta preventiva central em casos de violência comprovada, a Medida Protetiva de Urgência (MPU), é frequentemente uma ilusão, porque descumprida, na prática. Há inúmeros casos em que mulheres assassinadas já possuíam ordens judiciais contra seus agressores, mas foram mortas por falhas na fiscalização dessas medidas.

Por outro lado, enquanto a mulher se vê desamparada, o agressor frequentemente é tratado com uma assustadora leniência. Por exemplo, outro dia o influenciador "Calvo do Campari", líder notório do movimento Red Pill no Brasil, uma das “estrelas” da “machosfera”, foi preso em flagrante por agressão e tentativa de estupro contra a namorada, mas acabou liberado por decisão de um juiz. Agora, ela - a vítima - é quem vive sob custódia do medo de um cara rico e influente que, depois de cometer um crime, anda solto como se nada houvera.

A misoginia - definida como o ódio de pessoas do sexo masculino contra pessoas do sexo feminino - precisa ser tipificada no Código Penal. Canais digitais e ideologias organizadas, como a "machosfera" e os grupos “Red Pill”, que lucram milhões incitando o desprezo e a violência masculina contra mulheres, devem ser criminalizados imediatamente. Assim como a jurisprudência e a legislação brasileira não toleram o racismo (crime inafiançável e imprescritível) e o Supremo Tribunal Federal equiparou a homofobia e a transfobia à injúria racial, a misoginia - como forma de ódio e discriminação a pessoas do sexo feminino - não pode mais ser tolerada.

Nessa semana, finalmente, a sociedade e as instituições parecem ter, enfim, acordado. Há convocações para manifestações no Brasil inteiro, inclusive com muitos homens se apresentando como “aliados”. Mas além de cantar e caminhar juntos e de postar vários cards, o que faremos, na prática? Eu quero é prova, prisões, investigações, processos e resultados. Aprendemos a proteger diversos grupos minorizados, mas em relação ao enorme leque de violências masculinas contra mulheres, as providências são insuficientes e a movimentação objetiva e eficaz já está centenas de anos atrasada.

Por @flaviaazevedoalmeida