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Mulheres Vivas: por que o sexo ainda é o marcador que define quem manda e quem morre?

Entenda a estrutura histórica que coloca as mulheres em desvantagem absoluta e o motivo da manifestação deste domingo em Salvador

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 13 de dezembro de 2025 às 13:00

Mulheres Vivas
Mulheres Vivas Crédito: Made with Google AI

Não se trata de concordar ou discordar, achar bom ou ruim. Existe uma verdade que atravessa milênios e fronteiras, permanecendo imune a avanços tecnológicos, reformas políticas ou qualquer ideologia. O nascimento de uma mulher é, na maior parte do mundo, o anúncio de uma desvantagem programada. Não importa a classe social ou a cor da pele; antes de sermos qualquer outra coisa, somos lidas pelo nosso sexo. É essa marca que define uma subordinação imposta logo na largada, inicialmente aos homens do nosso grupo familiar.

Isso significa que, independentemente da cultura, do nível econômico ou do período histórico, ser mulher é o primeiro fator que nos coloca em vulnerabilidade. Esse lugar que o sexo impõe vem antes de qualquer outro marcador. Neste domingo (14), o movimento Mulheres Vivas ocupa as ruas de Salvador para exigir o fim da violência masculina contra as mulheres. É um movimento necessário. Porém, antes de ir gritar na passeata, convido você - mulher ou aliado - a pensar aqui comigo sobre esse caso.

Para entender o problema do feminicídio e todos os outros que vivemos por sermos mulheres, é preciso ter a informação de que a história da humanidade é, em essência, a história da opressão exercida sobre a mulher. Essa opressão se manifesta em todas as épocas e se estabelece como um marcador de vulnerabilidade que precede e transcende distinções de classe ou raça.

Embora o conceito de interseccionalidade seja fundamental para entender as diferentes camadas de sofrimento e pensar políticas públicas, observe que, ao compararmos sujeitos na mesma posição social - como um homem e uma mulher brancos e ricos -, ela ainda enfrentará barreiras e violências específicas que nunca farão parte da vida dele. O resultado será o mesmo em qualquer dupla de indivíduos em que você neutralize outros marcadores e deixe apenas o sexo como diferença. Em todos os casos, você vai ver que a mulher estará sempre em vulnerabilidade maior. Isso tem uma explicação histórica.

O início dessa condição na maior parte do planeta está na primeira divisão do trabalho. O que originalmente se baseava em fatores biológicos, como a gestação e o cuidado com a prole, foi transformado em um sistema de exploração sistemática. Com o surgimento da propriedade privada e a necessidade masculina de concentrar riquezas, houve a derrubada do direito materno e a instauração da descendência patrilinear. Esse é o nome do sistema de parentesco onde linhagem, nome, herança e pertencimento a uma família são traçados exclusivamente através da linha masculina. É por essa lógica que, até hoje, muitas mulheres “adotam” o nome dos homens no casamento.

Essa realidade não é uma peça de museu. A descendência patrilinear ainda é o sistema mais comum em nível global. Cerca de 44% das sociedades catalogadas no Ethnographic Atlas de Murdock praticam a descendência patrilinear, em comparação com apenas 17% que usam a matrilinear. Esse evento, descrito por Friedrich Engels como "a grande derrota histórica do sexo feminino", marcou o momento em que deixamos de ser sujeitos para nos tornarmos propriedade. As consequências estão aí até hoje.

Veja que essa grande derrota se consolidou exatamente pelo controle da nossa capacidade sexual e reprodutiva. A apropriação do corpo feminino pelos homens ocorreu antes mesmo da formação das sociedades de classes. A monogamia - para nós, claro, porque homens sempre tiveram garantida a liberdade sexual - nesse contexto não nasceu do afeto, mas sim de uma imposição econômica para garantir a paternidade inquestionável dos herdeiros. O controle do útero foi a primeira forma de gestão de patrimônio da história da humanidade.

Tanto que a dominação do sexo masculino sobre o feminino serviu como modelo para outras formas de opressão. Os homens aprenderam a estabelecer hierarquias exercendo domínio sobre as mulheres de seu próprio grupo antes de aplicar essa lógica a estranhos. A escravização, como instituição, teve início com o corpo feminino. Enquanto guerreiros derrotados eram executados, as mulheres eram capturadas para servir como mão de obra e objeto sexual. Muitos teóricos afirmam que o controle da sexualidade feminina foi o protótipo sobre o qual se ergueram as classes sociais. Isso faz todo sentido: se é "natural" que um sexo domine o outro, torna-se logicamente aceitável que um grupo domine outro.

Essa dominação e exclusão estão presentes em muitos âmbitos, inclusive no simbólico e intelectual. Fomos impedidas de participar do registro histórico e da interpretação do passado. A "história", escrita por homens e para homens, nos tratou como figurantes irrelevantes. Essa marginalização foi legitimada por pilares do pensamento ocidental, como Aristóteles, que definiu a mulher como um "macho mutilado", ou seja, um ser humano incompleto e irracional. O próprio monoteísmo hebraico substituiu as deusas da fertilidade por um Deus-Pai masculino, excluindo as mulheres da comunhão sagrada e reservando-lhes a submissão.

Mas vamos olhar para o Brasil atual. Mesmo sendo a maioria da população e possuindo maior nível de escolaridade, as mulheres ocupam poucos espaços de decisão. De acordo com dados recentes do IBGE, a diferença salarial no Brasil ainda é de cerca de 21%, chegando a quase 30% em cargos de maior qualificação. No Poder Judiciário e em conselhos de administração, mulheres relatam ser frequentemente silenciadas por seus pares, um fenômeno que prova que o prestígio profissional não anula a barreira do sexo.

Além da disparidade financeira, a mulher carrega o peso do trabalho reprodutivo. Dados do IBGE mostram que as brasileiras dedicam, em média, quase o dobro do tempo dos homens às tarefas domésticas e de cuidado com crianças. Essa jornada invisível limita o crescimento profissional e gera a chamada "penalidade da maternidade". Pesquisas da FGV indicam que cerca de metade das mulheres que tiram licença-maternidade perdem seus empregos em até dois anos após o retorno. Já para os homens, a paternidade não representa um risco à estabilidade, muitas vezes sendo vista como sinal de responsabilidade.

A lente da interseccionalidade nos ajuda a enxergar que a vulnerabilidade é multifacetada, mas o sexo é a base sobre a qual as outras opressões se acumulam. Uma mulher negra e quilombola enfrenta dificuldades que uma mulher branca não vive, porém, dentro de seus próprios grupos, são os homens que detêm o poder e as mulheres que sofrem na base da pirâmide. O sexo é o fator que torna a mulher, em qualquer contexto, mais suscetível à perda de autonomia e à consequente violência masculina.

Sejam quais forem os agravantes atuais, todo feminicídio está relacionado a essa estrutura. Qualquer explicação que se dê, qualquer teoria que se desenvolva, tudo estará ligado ao lugar no qual fomos colocadas, ao longo dos séculos, em relação aos homens. Somos uma categoria política que precisa conquistar emancipação integral. Em todos os espaços e, principalmente, dentro das nossas comunidades, entre os nossos “iguais”. Isso é essencial para a manutenção das nossas vidas. Só estaremos protegidas quando a base de todas as opressões - a desvantagem imposta ao sexo feminino - for finalmente superada. Até lá, tudo, para nós, será sempre mais difícil e, principalmente, arriscado.

Por @flaviaazevedoalmeida