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André Uzeda
Publicado em 21 de dezembro de 2025 às 05:00
Se em Salvador é dois de fevereiro, em São Paulo são os dois primeiros fins de semana de dezembro. Desde 1969, a Festa de Iemanjá acontece de forma oficial em Praia Grande, cidade litorânea, a 70 km da capital. >
Diferentemente do que se imagina à primeira vista, esta não é uma empreitada paulista tipicamente comercial – daquelas que utilizam símbolos culturais de outros lugares para vender um simulacro de experiência gourmetizada.>
A Festa de Iemanjá de Praia Grande tem história, densidade religiosa, resistência aos desmandos do poder público e reivindica o título de “maior evento umbandista do Brasil”.>
A prefeitura calcula a presença de 300 mil pessoas nos quatro dias de festejos. Centenas de terreiros de vários lugares do país ocupam tendas na areia da praia, formando um longo corredor espiritual entre os bairros de Vila Mirim e Caiçara. Os atabaques não cessam durante horas, invadindo a madrugada e virando noite no chamamento às entidades. >
O cenário provoca cenas extremamente inusitadas. É muito comum, ao longo do dia, ver pessoas com trajes de banho sendo atendidas por médiuns incorporados, conversando sobre questões filosóficas, recebendo conselhos e passes ou falando sobre problemas banais do cotidiano.>
O fato é que, excetuando ao culto à ‘Rainha do Mar’, poucas são as semelhanças guardadas entre a Festa de Iemanjá em Salvador e a que ocorre no litoral paulista. Enquanto a nossa costuma caminhar no limiar entre o sagrado e o profano – com músicas, show de artistas, feijoadas e manifestações políticas –, em São Paulo a imersão mira exclusivamente a espiritualidade, sobrando pouquíssimo espaço para manifestações, digamos assim, mais mundanas.>
Estátua de Iemanjá e ditadura>
Em Salvador, a Festa de Iemanjá começou em 1923. E, no Rio Vermelho, se iniciou a partir da colônia de pescadores Z1, com a entrega do presente à Mãe D’água.>
Em Praia Grande, os primeiros relatos da reunião de terreiros de umbanda são imprecisos, mas datam dos anos 1950. Em dezembro de 1969, o prefeito Dorivaldo Loria Júnior abraçou os festejos populares autorizando que o evento passasse a integrar o calendário oficial da cidade. O sucesso foi tremendo, reunindo mais de 15 mil pessoas.>
O curioso é que naquele mesmo ano e mês em que a festa passou a ser chancelada pelo poder público, a ditadura militar brasileira comemorava um ano da efetividade do seu decreto mais repressivo: o AI-5, responsável pelo fechamento do Congresso Nacional, suspensão de direitos políticos, cassação de mandatos e institucionalizando a censura aos veículos de comunicação e a tortura aos considerados inimigos do regime.>
O prefeito Dorivaldo Loria não era exatamente um subversivo. Muito pelo contrário. Tinha sido eleito pela Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido dos militares.>
Longe dos quiprocós políticos, os umbandistas continuaram fortalecendo sua fé, ampliando a participação dos adeptos na festa, até atingir a incrível marca de mais de 300 mil pessoas em 1975.>
No ano seguinte, diante do enorme sucesso estabelecido, foi inaugurada uma estátua de Iemanjá (de pele branca, trajando uma túnica azul) no bairro de Vila Mirim, na orla de Praia Grande.>
Esculpida pelo artista Antônio Miguel de Almeida, o monumento tem oito metros de altura e é o marco zero dos festejos. É a partir de lá que as tendas vão sendo montadas, em numeração crescente, por uma longa extensão na faixa de areia. >
Ao redor da estátua, os fiéis depositam inúmeras oferendas, como peixes fritos, frutas, velas acesas, garrafas de espumante, rosas brancas, pudins e acarajés. >
Bem pertinho da estátua, já é possível avistar as primeiras giras, com pessoas vestidas de branco, tocando e cantando músicas para os orixás e incorporando, a céu aberto, caboclos, marinheiros, erês, pretos velhos, pombas giras e exús. >
Contra a escuridão da intolerância>
Este ano a festa aconteceu cercada de polêmicas e desagrados. Isso porque, em setembro, a prefeitura divulgou uma nova portaria, mudando o regramento estabelecido para a organização.>
Os terreiros reclamaram que as novas normas dificultavam a realização da festa, retirando até o fornecimento de energia das tendas. Eles ingressaram com um mandado de segurança – o juiz concedeu a liminar em outubro – para que a energia fosse garantida pelo poder público.>
Ainda assim, muitas tendas ficaram às escuras, sendo preenchidas à luz de velas e lanterna dos celulares. Desde 2021, a Festa de Iemanjá é patrimônio cultural de natureza imaterial do município de Praia Grande.>
Os recentes episódios de intolerância religiosa que se multiplicam Brasil afora parecem querer apagar – literalmente – o brilho da festa. Não vão conseguir. “Exu é luz que clareia o caminhar”, diz a música. Laroyê!>
Esta coluna é dedicada à Júlia Sarmento, Ive Deonísio, Camila Brainer e Felipe Attuy, companheiros de viagem pela Praia Grande.>