Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
André Uzeda
Publicado em 6 de setembro de 2025 às 08:00
Ao se deparar com Carlos Big em sua galeria de artes na Rua Gregório de Matos, 36, no Pelourinho, nem era preciso ser fluente em inglês para sacar a ironia bilíngue. >
Medindo 1,50 de altura, Carlos Augusto Alves Pereira foi uma das figuras mais cativantes do Centro Histórico de Salvador. Com sua voz rouca em tom grave era uma espécie de síndico da região, usando sua extensa popularidade para interceder pelos comerciantes locais e resolver eventuais pendengas.>
Para além do magnetismo natural, Big tem seu nome gravado como artífice da cultura afro-brasileira, sendo o elo primordial entre dois monumentos culturais do Carnaval soteropolitano: o bloco afro Ilê Aiyê e o afoxé Filhos de Gandhy. >
Em 20 de agosto deste ano, Carlos Big morreu vítima das complicações decorrentes de um Acidente Vascular Cerebral (AVC), ocorrido seis dias antes. Seu corpo foi enterrado no Cemitério Ordem Terceira de São Francisco, na Baixa de Quintas, em Salvador. Ele tinha 69 anos.>
Seu legado, no entanto, permanece intacto. E, com o perdão do humor britânico, gigantesco.>
Turma da Ipê>
Carlos Big costumava dizer que foi criado na rampa do Mercado Modelo. Não o prédio atual, mas o primeiro – aquele que foi destruído por um forte incêndio, em 1969, e que tinha uma plataforma inclinada, por onde os comerciantes, ao desembarcar com seus saveiros, usavam para levar as mercadorias.>
Guiomar Alves Pereira, mãe solo, vendia comida nas docas, enquanto o filho brincava por entre as embarcações. De carisma acentuado, o menino fez muitas amizades, que lhe renderam um convite para desfilar no grupo Filhos do Morro – uma extinta escola de samba de Salvador, que ia às ruas do centro com as cores preto e branca.>
O fascínio constante pelo Carnaval criou novas conexões durante a juventude. Em 1972, o mundo foi invadido pela onda ‘black soul’, a música negra norte-americana, puxada por nomes como James Brown, Aretha Franklin, Diana Ross, Marvin Gaye e, pouco depois, os Jackson 5.>
Carlos Big tinha 16 anos à época e, ao lado de tantos amigos, passou a se juntar a eles para ouvir as novidades que saíam em vinil. A turma se reunia em frente a uma loja chamada Ipê, que ficava no bairro da Liberdade.>
Lá, eles trocavam figurinhas musicais e também tentavam emular as referências estéticas dos seus artistas preferidos, como as roupas coloridas, as calças jeans Lee, pantalona boca de sino, o sapato alto e a cabeleira black.>
Como tinha muitos contatos entre os comerciantes das docas, Big era quem conseguia algumas das roupas que vestiam a turma – boa parte, como admitia o próprio, contrabandeada do exterior nos porões dos navios.>
A turma, formada por nomes como Vovô, Big, Bebete, Marrom, Charuto e Mirabor, primava pela elegância e por cultuar referências negras. Constantemente organizavam bailes em suas casas e também eram contratados, por um punhado de cruzeiros pagos antecipadamente, para alegrar aniversários, batizados e até casamentos. O ponto de encontro deu o carimbo de batismo ao grupo: Turma da Ipê, com a variante de também ser chamada de Turma do Brown.>
Em 1974, os integrantes se organizam para criar o primeiro bloco afro carnavalesco do Brasil. Ainda inspirados pela cultura black dos Estados Unidos, os nomes iniciais propostos foram ‘Black Power’ ou ‘Mundo Negro’. >
Só depois, por influência do candomblé e de Mãe Hilda (mãe de Vovô), a indicação veio por África: Ilê Ayiê – em iorubá, a Casa do Mundo.>
“Eu fui o primeiro sócio a pagar para sair no Ilê”, costumava dizer, orgulhoso, Carlos Big. Ele sempre contava que empenhou parte do salário que recebeu no Clube Bahiano de Tênis, onde trabalhava à época, para se dedicar à fantasia.>
“Com Carlos Big morrem as mais lúcidas lembranças do movimento black na Bahia. Perdemos uma memória absurda de parte da nossa cultura. Até o fim, Big mostrou-se afoito em trazer o passado do povo negro para o presente, como se essa fosse uma das saídas para vencer o racismo”, escreveu o jornalista Alexandre Lyrio, em suas redes sociais, após o anúncio da morte de Big.>
Lyrio, ao lado do também jornalista Pedro Santana, trabalha em um documentário sobre a história do movimento black na Bahia.>
O inventor do broche no turbante>
As relações de Carlos Big com o Carnaval e a música negra não ficaram restritas aos anos 1970. Nos anos seguintes, suas relações marítimas da infância reclamaram espaço, e ele passou a fazer parte dos Filhos de Gandhy – afoxé criado por estivadores do porto de Salvador, em 1949.>
O ingresso de Big coincide justamente com a era da retomada do Gandhy, impulsionada pelo ingresso de Gilberto Gil no afoxé, após voltar do exílio na Europa, imposto pela ditadura militar.>
Big contava que foi ele quem criou a ideia de costurar um broche luminoso no meio turbante, como uma espécie de insígnia. O conceito, dizia, era para se destacar como o mais bonito entre os fantasiados. A partir dali, virou código de vestimenta entre os adereços, tal qual os colares e os contreguns nos braços.>
Anos depois, de associado viraria um dos diretores dos Filhos de Gandhy. Carlos Big também treinou suas filhas e sobrinhas para se dedicar à arte da turbantaria – a modelagem que consiste em esculpir o ponto exato da toalha no formato da cabeça do associado. Nem apertada e nem folgada demais.>
Em 1996, Big viveria duas grandes realizações no mesmo ano. Em fevereiro, conseguiu ver de perto um dos seus ídolos da juventude, quando era um dos mais bem vestidos integrantes da Turma da Ipê. Michael Jackson esteve em Salvador, acompanhado do cineasta Spike Lee, para gravar o clipe "They Don't Care About Us", com a banda Olodum.>
Meses depois, usando sua bem engordada agenda de contatos, obtidas por meio do carisma e da entrada que tinha no Clube Bahiano de Tênis, conseguiu abrir sua galeria de artes no Pelourinho, onde trabalharia religiosamente até o dia da sua morte, por quase 30 anos. >
Esta coluna é dedicada a Izia e Safira Cerqueira, herdeiras de Carlos Big e duas das melhores turbanteiras dos Filhos de Gandhy.>