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André Uzeda
Publicado em 6 de julho de 2025 às 08:00
No acervo do Memorial da América Latina, em São Paulo, há um barco em miniatura pendurado na parede. Ao lado da pequena maquete, um texto explica sua origem: a lenda do vapor encantado. >
Esta é uma história que, há alguns séculos e com muitas versões diferentes, permeia o imaginário das cidades ribeirinhas do Rio São Francisco, sobretudo na porção oeste da Bahia – entre as cidades de Januária e Bom Jesus da Lapa. Outras muitas, no entanto, também navegam na mesma mitologia.>
Nas noites de Lua cheia, um enorme vapor iluminado, com fumaça soprando pelas chaminés, surge imponente no meio do rio. Alguns dizem ouvir sons de uma grande festa vindo do convés, enquanto outros rebatem alegando o torpor do silêncio, diante da ausência de qualquer tripulante a bordo.>
Na lenda, o vapor foi primeiro avistado por dois canoeiros. Estupefatos diante da enorme aparição, tentaram se aproximar, mas, ao chegarem perto, a colossal embarcação desapareceu num piscar de quatro olhos.>
Nos dias seguintes, eles passaram a manifestar estranhas habilidades. A dupla começou a prever os acontecimentos – bons e ruins – na vila onde viviam. Nascimentos, mortes, acidentes, decretos do prefeito e boas temporadas de pesca eram antecipados e, posteriormente, confirmados com exata precisão. Tempos depois, da mesma forma inesperada que surgiram, os poderes desapareceram.>
O vapor fantasma ainda aparece para alguns moradores, mas nem todos são capazes de enxergá-lo quando singra misteriosamente as águas doces do Velho Chico. Os afortunados são agraciados pela magia do presságio, profetizando os eventos fundamentais por um considerado período de tempo.>
O vapor na cultura brasileira>
A lenda do vapor encantado é uma inspiração frequente na cultura ribeirinha. Músicas, livros, artesanato em cerâmica e poesia mencionam a chegada da embarcação e tentam interpretar as mensagens por trás da sua enigmática aparição.>
Uma das teses artísticas mais aceita é aquela que associa o evento às tradições ancestrais. O barco traria à bordo pessoas que já partiram, em travessia rumo ao desconhecido. Algumas vezes navegando em celebração, em outras, num profundo pesar.>
Aqueles que com capacidade de enxergá-lo mantêm uma sensibilidade mediúnica e se conectam com o vapor, que segue viagem cruzando o tempo histórico por meio do rio. >
À medida que o vapor avança, vai alcançando outras dimensões temporais, permitindo aos seus fiéis olheiros testemunharem lampejos do futuro. O prazo de validade das premonições rompe no momento em que o vapor alcança seu destino e, finalmente, atraca. Sabe-se lá onde.>
Em 2016, a novela Velho Chico, da TV Globo, chegou a mencionar a história do vapor fantasma durante alguns episódios, embora com livres adaptações em relação à lenda original. >
O barco se chamava Gaiola Encantado e recolhia as almas das pessoas mortas próximas ao rio. Era também responsável por trazer outras de volta à vida, em um processo espírita de reencarnação.>
A novela foi marcada por uma terrível tragédia. Em 15 de setembro daquele ano, o ator paulistano Domingos Montagner morreu afogado na cidade de Canindé, em Sergipe, após mergulhar no rio São Francisco durante o intervalo das gravações.>
Semanas antes de morrer, o personagem Santo dos Anjos (interpretado por Montagner em Velho Chico) havia sido salvo por indígenas, que o encontraram inconsciente dentro do rio, após levar um tiro.>
Realismo fantástico na América Latina>
É curioso que a história do vapor encantado esteja exposta no Memorial da América Latina. O lugar foi idealizado pelo antropólogo Darcy Ribeiro e desenhado pelo arquiteto Oscar Niemeyer como um centro cultural de integração do Brasil com seus vizinhos continentais.>
Inaugurado em março de 1989, o espaço possui um acervo de mais de 10 mil itens, que permite o intercâmbio cultural entre os 20 países que compõem o bloco.>
De uma forma bem próxima, a lenda do vapor encantado aparece num conto do escritor colombiano Gabriel García Márquez. Em 1968, o maior expoente do Realismo Fantástico escreveu o pouco badalado conto ‘A Última Viagem do Navio Fantasma’. >
Na obra, ele narra a história de um menino que enxerga um enorme transatlântico fantasma atravessando a baía da aldeia onde morava. Apenas o guri avista a embarcação e fica obstinado em provar aos demais moradores que ela realmente existe. “Agora vão ver quem sou”, diz ele, na abertura do livro. >
A saga de navios fantasmagóricos não é uma exclusividade do São Francisco. Neste ramo, a história mais famosa pelos sete mares é do Holandês Voador, um cargueiro da Companhia das Índias Orientais que teria afundado no século 18 e, ainda hoje, apareceria para marinheiros desafortunados como sinal de naufrágio iminente.>
Gabo, no entanto, preferia beber em histórias da sua aldeia, ou da própria América Latina – “esse reino sem fronteiras de homens alucinados e mulheres históricas, cuja infinita obstinação se confunde com a lenda”, conforme descreveu em seu discurso ao receber o Nobel de Literatura, em 1982.>
Não é possível confirmar que a inspiração de García Márquez para seu conto infanto-juvenil tenha sido a lenda ecoada na Bahia. Por influência do seu amigo Jorge Amado, a primeira visita dele no estado só aconteceu em 1992, mais de vinte anos depois de ‘A Última Viagem do Navio Fantasma’ ter sido publicada.>
No entanto, quem há de duvidar que, ao cruzar e desaparecer no Velho Chico, o vapor encantado não deságue justamente nos pântanos de Macondo?>
*Esta coluna é uma homenagem à doutora Fernanda Sales e à toda competente equipe médica do Hospital Português.>