A síndrome de Gordon, ou o jeitinho brasileiro de ser e permanecer

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  • Da Redação

Publicado em 27 de janeiro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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A imagem da tevê precária chuviscava a ponto de o piso encerado com zelo e cera cachopa vermelha por minha mãe raiar de faíscas, num lusco-fusco chinfrim. O som era chispado por zunidos e zumbidos. Ainda assim eu não desgrudava os olhos transidos daquela geringonça antediluviana. Ainda assim eu não desgrudava a bunda da poltrona de veludo verde mofada e esgarçada.

Era-me o grande momento da semana: a hora de assistir ao programa humorístico Familia Trapo, exibido semanalmente pela TV Record de São Paulo, que só chegava às brenhas da Bahia duas semanas depois, em videotape. Tudo era gravado ao vivo na capital paulista, com plateia e claque, e estrelado por elenco afinadíssimo, no qual pontificavam Ronald Golias (gênio da raça), Renata Fronzi, Otelo Zeloni, e o então rapazote gorducho Jô Soares.

O resumo da ópera-bufa era simplório, mas cheio de verve: família média brasileira às voltas com os quiproquós, as desavenças e as diatribes de se viver nos agitados e demolidores anos 1960. Havia tom crítico algo ingênuo nos diálogos, mas o clima geral era de pândega, galhofa e de, para usar expressão da época, ‘tonga na mironga do kabuletê’.

Das centenas de cenas que devorava com gula em, digamos, tão tenra idade, uma, apenas uma, nunca escaparia da minha memória. A seguinte: Jô Soares, no papel do desleixado e folgado mordomo Gordon, encarregado da fazer a faxina da casa, preferia exercer tal missão, que odiava, quando estava sozinho. Esperto, incorporava o espirito macunaímico que – graças ao gênio indomável de Mario de Andrade – virou a marca registrada do povo brasileiro desde sempre. Honra ao demérito.

O mordomo-macunaíma cumpria a tarefa que lhe cabia até o momento em que precisava se curvar, arrastar com vassoura a sujeira acumulada até uma pá e jogar a sujeira acumulada em lata de lixo. Detalhe: nunca havia esse utensílio em cena. Não precisava. Gordon sempre levantava alguma ponta do tapete que cobria o chão do cenário e ali enfiava a poeira, as migalhas de alimentos e o diabo a quatro.

Desde que me entendo por gente ouvia a expressão ‘jeitinho brasileiro’. Referia-se jocosamente  a comportamento típico padrão de agir e de viver das gentes brasileiras e era tão genuinamente nacional quanto bananas, jogo do bicho, carnaval e cigarros Continental.

Conscientemente, ou não, os autores dos textos do programa humorístico – ou o próprio comediante em insight inspirado – explicitaram de maneira cênica esse tal ‘jeitinho brasileiro’ – esse espírito de corpo que nos marca a ferro e fogo, e que nos consagra como o país de meia pataca que sempre fomos.

Diante desse diagnóstico tragicômico, mais trágico do que cômico, eu poderia odiar ser brasileiro. Não chego a odiar. Mas se pudesse escolher outro país para nascer, ninguém pode, eu teria pedido para nascer em outro país. Patriotismo? Nacionalismo? Em bom português, ‘ merda de touro’. Óbvio ululante: se eu tivesse nascido na Noruega eu amaria a Noruega, ora se não?!]