New York, New York, ou o livro vermelho não está sobre a mesa

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • D
  • Da Redação

Publicado em 20 de janeiro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Na segunda metade dos anos 1960 ensinava-se inglês assim nos altos grotões do sertão baiano. A professora escrevia na lousa palavras básicas do idioma, acompanhadas das traduções em português. Eu copiava tudo. Apple = maçã. Table = mesa. Red = vermelho. Book = livro. Is = é. Are = são. Love = amor. Beautiful = bonito. Am = sou. The = O. Verbos, artigos, adjetivos, substantivos eram misturados em tresloucado patchwork. De vez em quando escrevia no então chamado quadro-negro alguma frase não muito longa, seguida da versão em português.

No final do ano letivo pediu que escrevêssemos texto em inglês de no máximo 15 linhas. Os colegas deram faniquitos. Como juntar aquela barafunda de palavras que anotamos e decoramos? [Fui para casa e penosamente escrevi 12 linhas. Não lembro tudo o que, digamos, cerzi, mas a pequena redação começava assim: ‘The red book is on the table. I love book’].

Com métodos menos rudimentares de aprendizado em cursos de bom nível feitos em Salvador, São Paulo e Brasília passei a falar a língua inglesa com certa fluência. Nas muitas viagens que fiz ao Exterior nos anos dourados fazia bonito. Tagarelava em inglês com sotaque britânico, como se tivesse nascido em Glasgow, na Escócia, e não neste pardieiro político-ideológico execrável.

Adoro Nova York. É uma das dez cidades da Terra onde gostarei de morar, mas, diz o bordão popular, ‘Deus não dá asa a cobra’ – e fui condenado a ser peixe fora d’água nesta pátria que me pariu.  Estava em New York City em janeiro de 1999. Fazia frio de 20 graus negativos e camadas de neve de muitos centímetros se acumulavam nas ruas. Gosto de frio. Odeio calor. Mas fui obrigado a comprar duas garrafas de conhaque em loja em frente ao hotel para enfrentar as borrascas e os pés que teimavam em congelar.

As ruas de Nova York pareciam pistas de patinação – e eu, com minhas botinas inadequadas, escorreguei  e caí vezes sem conta. Eu e centenas de nova-iorquinos. A ponto de, no dia seguinte, o The New York Times publicar reportagem de página inteira sobre o assunto. Assunto aparentemente banal, mas que texto! Guardei esta página durante muito tempo, reli várias vezes, e acho que, para sempre, procurei incorporar o espírito do bom jornalismo.

Quedas de bunda no solo, assédios sexuais bem-vindos, visitas obrigatórias ao Moma, ao SoHo e ao Central Park, tudo às mil maravilhas. Até que evento inusitado me assombrou. Em certa manhã dispensei o café vagabundo do hotel, tomei três ou quatro talagadas de conhaque e caminhei até a Broadway sem tombos e escorregões. Fui ao teatro no qual a encantadora Nicole Kidman estrelava a versão teatral de Cabaret, filmaço dirigido por Bob Fosse em 1972. Valeria o ingresso. Não valeu. [Em Brasília, onde então eu morava, agente de viagem garantira que meu bilhete estava reservado para aquele dia e que bastava apresentar o passaporte a quem estivesse na bil heteria. Não foi bem assim].

Conversei em inglês com bilheteira bonita, mas antipática, e ela disse que não havia nenhum ingresso reservado em meu nome. Surtei. Apresentei passaporte, dois cartões de crédito, R.G., carteira internacional de jornalista, o diabo. A partir de certo momento o conhaque fez efeito inesperado e passei a não entender nada do que a mulher falava e comecei a falar inglês similar ao que ‘aprendi’ na infância sertaneja. O bate-boca de surdos durou séculos. Até que desisti. Gritei bem alto e cheio de ira: - The red book is not on the table, bitch! Ela me olhou com enorme ponto de interrogação na ponta do nariz e urrou – e eu entendi direitinho: - Fuck yu, brazilian asshole!