Quarteto natalino, ou as três Doralices e o amado amigo que partiu

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  • Da Redação

Publicado em 23 de dezembro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Conheci Doralice 1 na faculdade, nos anos 1970. Bonita, intensa, arrojada, mas, vista de maneira mais acurada, captava-se personalidade tosca e rude. Gostava de repetir ad nauseam que me amava demais. Nossa amizade nunca teve conotação sexual – pelo menos de minha parte – mas ganhou viés patológico abominável. Ela resolveu ser dona de mim. Danou-se.

Nalgum verão dos anos 1980, ao voltar de viagem, encontrei sobre a mesa do pequeno escritório, correspondência a ser enviada. O remetente: o meu então primeiro marido.  A destinatária:  a melhor amiga desse meu então primeiro marido.

Abri o envelope. Meu então primeiro marido confessava à melhor amiga que estava se desinteressando por mim e se apaixonando por outro. Fim de feriadão, poucos amigos na cidade, liguei, desesperado, para Doralice 1. Ela uivou:  - Bem feito. Eu quero que você se foda.  [Fecha o pano].

Doralice 2 eu conheci em São Paulo no caótico transe da redação de grande jornal. Apesar de ser mais jovem do que Doralice 1, tinha os mesmos tiques narcisistas e neuróticos da antecessora, e, questão de tempo, tomou posse de mim.

Usava-me emocionalmente à exaustão e eu me deixava abduzir. Certa tarde de domingo, já morando em Brasília, recém-demitido do jornal no qual vivi alguns dos melhores momentos de minha carreira, Doralice 2 me ligou. Pensei em não atender. Mas precisava desabafar.   Atendi. Antes que abrisse o meu coração falando do estado catatônico pós-demissão, Doralice 2 escancarou a bocarra e chorou pomares de pitangas. Aleguei pressa, passagem aérea marcada – e só duas horas depois consegui desligar. [Continua viva e forte e hiperativa, e lhe desejo sempre o melhor].

Doralice 3 chegou até a mim via algoritmos do facebook.  Leitora de meus textos virtuais, disparou-me e-mail efusivo. Enaltecia-me, fazia loas às minhas postagens. [Doralice 3 aproveitou pequena viagem que eu faria a Salvador, e marcou almoço comigo, ‘quero te conhecer’].

Estranha coincidência:  Doralice 1 e Doralice 3 nasceram em 25 de dezembro, e, pior, no mesmo ano. [Relevei a broxante informação e fui em frente. A prosa era boa. A comida, ótima. A chuva de elogios à minha literatura, prodigiosa. Deixei-me levar. Torpedeado por três espetaculares caipiroscas de jabuticaba vislumbrei, lira do delírio:  poderia se tornar a minha Pilar Del Rio, a mulher que catapultou a carreira de José Saramago].

Tratava-se de mulher de boa índole, mas com história de vida marcada por dois casamentos trágicos. Buscava em mim algum anjo salvador. Ao perceber que não poderia me adquirir, sumiu do mapa de maneira gradual e chorosa.

[Conheci em Brasília, nos anos 1990, homem  bacana que poderia ter sido a cereja desse troncho quarteto natalino. Também nascido num 25 de dezembro, colega de profissão, nos afinamos à primeira vista. Tinha senso de humor impecável, olhos azuis encantadores e savoir vivre notável.

Tinha tudo para ser exceção à regra das Doralices. Talvez nos tornássemos amigos para sempre. Não fosse por conta de acachapante detalhe:  N.E. morreu em junho de 2008.]