FLAVIA AZEVEDO

Caso do ‘pastor’: em abuso sexual, a criança que é culpada

E você aí, todo gente boa, também não tá fazendo nada

Publicado em 4 de maio de 2024 às 11:00

Ainda bem que o vídeo que me mostraram não tem a identificação do tal ‘pastor’, de modo que não sei quem é, de onde é nem que apito toca. Nem quero saber. Não pesquisei e não vou pesquisar a identidade de quem diz que criança tem culpa, quando sofre abuso sexual. Por motivo de preservar meu estômago, que não tenho mais idade. Mas, principalmente, porque não quero reincidir no erro tão contemporâneo de me distrair no absurdo individual e esquecer o solo fértil no qual o absurdo nasce.

(Você sabe do que estou falando? Se não, apenas faça a busca ‘criança tem culpa’, assista ao vídeo, e depois volte aqui pra gente conversar.)

Sempre que perco a paciência com meu pré -adolescente (e isso não é raro), lembro do senhor, lá na zona rural do Recôncavo, que me disse, falando sobre o próprio neto: ‘a mente dele ainda é verde, não pode apertar’. O rapazinho estava ‘dando trabalho’ e, com essa frase, o avô (analfabeto, lavrador, sábio) tomava para si (e para os outros adultos da família) a responsabilidade. Sem diploma nem de ensino médio – que dirá de psicologia – aquele homem tinha entendido tudo e me deu a lição que faltava para minha maternidade: ‘a adulta sou eu’. Achou bobo? Que nada. Entender isso, de verdade, é uma porrada.

Lição duríssima porque multiplica as nossas responsabilidades quando tudo que queremos é fugir da raia. A prova desse desejo coletivo tá aí, na quantidade de âmbitos da vida que são cada vez mais terceirizados e sobre os quais nem preciso falar. Você sabe que basta ter dinheiro pra pagar certos serviços que a pessoa não quer decidir mais nada. Alguém define o que ela deve vestir, o que comer, como rezar. Até o jeito de ‘pegar mulher’ (ou homem) e como se portar nos relacionamentos. ‘O outro’ que sabe. É a vida pavimentada com acabamento em porcelanato. Líquido, claro.

Daí que ‘terceirizantes’ também procriam e buscam, desesperadamente, a pavimentação da maternidade/paternidade. Só que gente recém-chegada ao mundo nem sempre cumpre a parte que lhe cabe no ‘ser pavimentada’ e, como sabemos, prego que se destaca leva martelada. Então, já que não colaboram com o design bege da contemporaneidade, estão por aí medicados (Ritalina é água), multiatarefados e frequentemente diagnosticados pra justificar o que, muitas vezes, é apenas originalidade. Um negócio que virou problema, quando é qualidade.

Tô falando de quem tem dinheiro, óbvio. Quem pode, pode. Quem não pode, se sacode como dá. Democrático é o incômodo que criança causa. Também o fato de que relação entre adultos e pessoas na infância é, tradicinalmente, ‘de fachada’. Tudo aparentemente fofo, mas ninguém se lasca mais do que elas, seio da família tradicional. Testemunhas e vítimas das maiores violências, depositório do que há de pior em nós e só por muito cinismo – ou ignorância – você poderia discordar. Não é a ‘minha opinião’. São os fatos que você pode ver nas ruas, nos telejornais, nos relatórios oficiais e, provavelmente, apenas olhando pro lado. No mínimo - quando tá tudo normal - ninguém as escuta de verdade.

Relação difícil por culpa dos próprios infantes, claro, todo mundo continua a concordar. Se observar caso a caso, você percebe que, quando há uma criança na história que deu merda, o povo diz que é dela a responsabilidade. O que começa até suave e bem-humorado, mas acaba dramático. Quer ver? Se a mulher queria um parto normal e teve cesariana, é porque o neném ‘não quis nascer’ e não porque a mãe foi incapaz de parir. Bebê que chora sem parar é ‘high need’ e eu também caí nessa, antes de entender que minha cabeça é que tava péssima no pós-parto e não há como uma mãe desequilibrada manter um recém-nascido calmo.

Isso vai escalando até, por exemplo, a criança que morre afogada na piscina porque ‘elas cegam a gente’ e não porque quem estava cuidando foi descuidado. Eu sei que dói, mas todos (todos!) os acidentes com pessoas na infância acontecem por culpa do adulto que tinha a responsabilidade de cuidar. Todos! A não ser quando são, comprovadamente, inevitáveis. Nunca é culpa da criança que tem o direito de ser cuidada. Dizer isso soa ofensivo para mães e pais, eu sei. É que a incapacidade de assumir ‘sim, errei, vou melhorar’ é um negócio que devia nos matar de vergonha, mas sustenta existências e relações, como se fosse a coisa mais normal.

Transferir a ‘culpa’ pro mais fraco é um hábito dos ‘fortes’ no mundo todinho, até onde consigo ver daqui. Em muitos âmbitos, inclusive, e em quase todos eles há quem defenda ‘o outro lado’. Estão aí algumas correntes políticas e os fortíssimos movimentos identitários que não me deixam mentir. Porém, para crianças, coletivamente, quase nada. Alguma luz no feminismo matricêntrico, mas ainda no lugar de objeto. Os conselhos tutelares são aquilo que bem conhecemos. Quem cumpre o ECA direitinho? Alguém sabe?

Não temos competência nem interesse nem saco. Bem por isso, mantemos infância como ‘assunto familiar’, ‘questão doméstica’ e tal. Menor importância. É nesse silêncio que tudo acontece. Inclusive os crimes sexuais cometidos, tantas vezes, por tios, amigos íntimos da família, avós e pais. E a culpa é de quem? De acordo com o tal ‘pastor’, da criança, claro. Assim como ‘não querer nascer’, ‘cegar cuidadores’ e causar todo tipo de descontrole emocional em pessoas já bem avançadas na idade. Aquele homem não foi preso porque o que ele disse fez sentido para quem escutou. Isso que é mais grave. Preste atenção e conclua que a gente demoniza crianças desde sempre, essa é a verdade. E você aí, todo gente boa, também não tá fazendo nada.

(Cuidar só da sua prole, mesmo ‘bem direitinho’, não vale.)

(Infância é pauta.)

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo