Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Flavia Azevedo
Publicado em 15 de fevereiro de 2025 às 08:00
Nas esquinas de Cachoeira, nos grupos de Whatsapp e no fórum da cidade, o silêncio e a discrição - características essenciais da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte – são brutalmente profanados. Para tristeza de todos os que respeitam a história da entidade - que nasce como primeiro movimento abolicionista feminista baiano -, disputas internas ultrapassaram os muros do casarão que abriga a fé afrocatólica, os princípios e os segredos de uma tradição que resiste há 206 anos. >
Essa situação foi profetizada pelos mais velhos do Recôncavo que, há anos, apontam o perigo da falta de engajamento de filhas e netas biológicas das irmãs, na sucessão dentro da irmandade. A profecia se cumpriu quando duas noviças – fora da linhagem biológica - dividiram a confraria em dois grupos antagônicos. Por comportamento inadequado, ambas foram expulsas da Boa Morte. Acontece que a semente da discórdia já estava bem plantada. Então, o conflito continua e cada vez mais grave. Agora, envolvendo a opinião pública e o Poder Judiciário.>
Neste momento, a irmandade é presidida por Joselita Sampaio Alves. Aliada das noviças, ela vem sendo acusada, pela maioria absoluta das irmãs, de não ter feito a prestação de contas referente aos anos de 2022 e 2023, de expor as irmãs ao ridículo em mídias sociais e de xingamentos contra as companheiras. Ela também é denunciada por ter captado R$406.550,00 junto ao Governo do Estado, para realização da Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, quando o valor necessário era R$225.000,00.>
Entre as acusações a Joselita, ainda está a alteração do estatuto da irmandade sem que fossem observadas as tradições. Essas alterações interferem na hierarquia da confraria, conferindo novo lugar – agora com voz e voto – para as noviças, que antes não tinham poder algum. Este é um dos indícios apontados por muitas irmãs para que se conclua que Joselita, uma senhora idosa, é manipulada pelas noviças que sofreram expulsão.>
(E que, de acordo com as mesmas irmãs, conseguiram reverter e já estão de volta à instituição.)>
Componentes da irmandade ainda atribuem a Joselita a responsabilidade de ter transformado a entidade - que secularmente tem caráter religioso - em uma instituição cultural, ou seja, habilitada assinar vultosos convênios com órgãos governamentais. Curiosamente, no mesmo ato, a presidente ampliou os próprios poderes para movimentar contas bancárias e assinar cheques independentemente da tesoureira ou da opinião do coletivo do qual é parte.>
Por tudo isso, no fim do ano passado, a Irmandade da Boa Morte, descontente com o comportamento de Joselita, a destituiu do cargo e elegeu em "assembleia geral formada pela maioria" uma nova presidente. Cleuza Maria assumiu a direção para, em seguida, por ordem judicial – e contra a vontade da maioria das irmãs – ser retirada da presidência. Então, Joselita voltou ao poder.>
A partir daí, a Boa Morte passou a viver dias ainda mais amargos, lidando com processos, citações judiciais e, de acordo com fontes, até liminar proibindo reuniões das irmãs mais velhas para tomar decisões internas. Em agosto passado, a festa da irmandade – que atrai milhares de turistas a cada ano – aconteceu em meio a esse turbilhão que põe em xeque a credibilidade desse nosso patrimônio precioso e ancestral.>
Uma das irmãs mais velhas me disse que confia em Nossa Senhora para que tudo se resolva. Uma outra evocou o poder de Oxalá. Ao me despedir das minhas fontes, impregnada desse sincretismo afrocatólico, pensei no quanto elas caminharam, nos últimos 206 anos. Na riqueza, no poder, nos mistérios, na dignidade dessa linhagem de mulheres fortes. No trabalho árduo de vender nas ruas para, com o dinheiro, comprar a alforria dos irmãos escravizados. >
Lembrei do meu olhar fascinado, quando eu era criança, para a procissão noturna que elas fazem segurando tochas acesas e de como elas ficam bonitas em seus trajes. Também das míticas joias que elas guardam a sete chaves e de todo o saber transmitido na oralidade. Concluí que a frase “vocês não sabem com quem estão lidando” é a que preciso pra fechar esse texto. Porque ao pensar nelas, mesmo aqui de longe, o que eu sinto é força e coragem. Também alguma esperança em seres humanos e isso me faz – do lugar de cidadã – pedir ao Poder Judiciário leitura atenta dos autos e especial atenção ao caso.>