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Flavia Azevedo
Publicado em 14 de agosto de 2021 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
Foi um vídeo que assisti, há meses. Tarcísio e Glória falando de amor. Do deles. Agora, com a morte do ator, a entrevista voltou a circular, você acha fácil no Google. É uma preciosidade, uma epifania. Repeti algumas vezes. Dois idosos, na época juntos há 56 anos, contam a própria história ainda vivendo cada sentimento dito.>
Neles, falar daquele encontro não me pareceu a autópsia de um romance já vivido, como percebo na maioria dos protagonistas de relações longevas. Era o amor acontecendo ali, aceso. Não havia cansaço nem nostalgia naquela história em curso, entre dois velhos absolutamente cúmplices e apaixonados, de olhos brilhantes, mãos enrugadas e corpos lentos.>
Aquele foi um dos poucos momentos em que acreditei que o encontro entre dois desconhecidos, que passam a ser um casal, pode ser a melhor coisa da vida. Isso porque discordo da hierarquia que afirma o romance como ponto central da existência. Pode ser, depende e isso é outro assunto, mas no caso deles, claramente, foi.>
Fiquei pensando naquele homem reconhecido como um dos maiores atores brasileiros e tive a sensação de que as telas, o teatro e a fama eram acessórios naquela existência. Hoje, depois da morte dele, ao ver tantas manifestações louvando a inegável grandeza profissional, ao ouvir e ler tantas vezes que ele fará falta para a arte, minha emoção foi pra outro lugar. É que há excelentes atores, mas Tarcísio foi um homem que amou.>
Em 1962, quando se conheceram, Glória já tinha dois filhos o que, na época (ainda hoje, olhe ao redor) era defeito gravíssimo. Às mães solteiras (ou separadas), era (ainda hoje, olhe ao redor) reservado o lugar de "vadia". Por mais ressignificado que seja esse termo, você sabe a que me refiro. O fato de serem artistas - portanto, mais "modernos" - não muda nada (ainda hoje, olhe ao redor) e essa escolha já diz muito sobre ele ainda que escrever isso, aqui, seja perigoso por parecer que considero que ele fez um "favor".>
Não fez, evidentemente. Mas, no mínimo, esse homem não estava conectado às miudezas convencionadas o que, diante do comportamento do gênero, já é bastante coisa. É claro que há encontros que subvertem preconceitos e que esses encontros nos surpreendem. Só que é a condução que define se amar vai ser sentimento ou existência.>
É existência nos casos em que há disponibilidade, possibilidade de entrega, de estar dentro daquilo, apesar de todas as distrações internas e externas. Conectar com alguém, de fato, é uma profunda - e preciosa - experiência espiritual. Amor é raro e sempre suficiente ou então é uma das aplicações banais da palavra.>
Estou tentada a dizer que ele teve fama, fortuna e mulheres gostosas à vontade, mas preferiu viver o casamento dele? Estaria bastante, caso conectada às miudezas convencionadas. Só que não estou. Apenas manter um casamento longo e miserável é comum, com o "juntos" cheio de aspas. Foi muito mais do que isso e tão mais que eu, de longe, acredito porque vi os dois naquele vídeo. Não precisei de mais nada. Tentada a dizer que Glória teve sorte? Sim. Ela mesma diz isso, com todas as palavras. Mas é da imensa sorte dele que falo>
Morreu um homem que amou, esse é o fato. Como disse que seria: antes dela. Aos 85 anos. Tenho a impressão de que a pandemia, pra ele, foi coadjuvante. Morreu depois de ter vivido, por quase seis décadas, uma experiência que a maioria das pessoas nunca vai experimentar. Porque a maioria de nós não sabe e chama de fluidez, achando graça do que é incapacidade.>
"Quando você saboreia uma coisa gostosa, a sensação que você tem do sabor, tudo, todos os prazeres que você possa ter, você tem quando ama uma pessoa", disse Glória. É isso. É possível que um romance seja a coisa mais plena da vida. Pra esse homem, foi o caso. Eu vi beleza, importância e legado. Principalmente, porque nos lembra de que amor pode ser sólido, firme, palpável, diferente do que se diz por aí, com ares de verdade.>