O que sabemos sobre os estupradores do Carnaval de Salvador?

São apenas homens que - em nossa cultura, neste momento e na opinião de boa parte da população - passaram dos limites ‘aceitáveis’

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 17 de fevereiro de 2024 às 08:00

Na semana passada, publiquei, aqui mesmo, um texto comemorando a crescente (e quase recente) liberdade feminina exercida – no vestuário e no comportamento - principalmente nos dias de Carnaval, na cidade do Salvador. Tudo verdade que qualquer pessoa pode comprovar. Como também é fato que, neste ano, durante a festa, mais de 200 mulheres denunciaram importunação sexual nos Centros de Referência de Atendimento às Mulheres, instalados pela prefeitura, nas proximidades dos circuitos Barra/Ondina e Campo Grande.

Esse número não traz toda a realidade. É óbvio que há subnotificação. Denunciar é um ato de coragem do qual nem sempre somos capazes e esse medo não é sem motivos. Pela mesma razão, é possível que os estupros também tenham sido subnotificados e três mulheres violentadas, durante os dias da festa, já é algo grave demais. Duas delas foram vítimas de estupros coletivos dentro do circuito Barra/Ondina. A terceira sofreu a violência enquanto se deslocava nas imediações do Campo Grande. Quando minha amiga me enviou a primeira notícia, respondi que ‘pelo menos agora vai pros jornais e abrem investigações’.

Sim, sustento que já tivemos dias piores. Mas, também sabemos que – assim como em tantas outras áreas - na relação entre gêneros, ainda estamos muito longe do nível suficiente de civilidade. Aí, é só raciocinar. O Carnaval exacerba belezas e horrores. Uma das nossas piores desgraças é o desejo doentio masculino de subjugar o feminino. Isso se expressa de muitas maneiras, inclusive na violência sexual que tem gradações até o que chamamos de estupro. Especialmente, o tipo que envolve a imobilização da mulher desconhecida para penetração forçada é o que esse masculino clássico deve perceber como ‘grande ato’. Em minha opinião, é essa a maior metáfora do machismo.

(Vídeos de estupros reais ou simulados fazem muito sucesso, entre homens, no mercado pornográfico. Pode pesquisar, não estou inventando nada.)

(Evidentemente, essa ‘ fantasia’ não estaria fora do Carnaval.)

Estupradores não são ‘monstros’ nem ‘animais’. São apenas homens que - em nossa cultura, neste momento e na opinião de boa parte da população - passaram dos limites ‘aceitáveis’. A depender da época e do contexto no qual nascem e crescem (também de trajetórias individuais, claro), eles podem parar antes ou tentar ir mais longe, achando a coisa mais normal. Sim, eu sei, há os psicopatas, os ‘doentes’ e tal. Mas respire e vamos pensar em coletividade, em história. Procurando direitinho, todos nós encontraremos estupradores e estupradas em nossas árvores genealógicas.

Por exemplo, não quero ofender antepassado de ninguém, mas a gente sabe o que nossos parentes distantes europeus fizeram em outros verões. Aos homens negros e indígenas, designaram trabalhos forçados. Às mulheres negras e indígenas, os mesmos trabalhos enquanto eram sistematicamente estupradas. Somos frutos disso, aliás. Homens estupram – principalmente mulheres - nas guerras e colonizações. Também estupram as próprias esposas, sobrinhas e filhas, em qualquer tempo, por ‘diversão’. Eu sei que esse é um papo cansado, mas nos faz lembrar que homens estupram e sempre estupraram. Ponto. Só não é um ponto final quando a gente se organiza para impedir esse comportamento. Aí tem luta interminável.

Um trabalho complexo que principalmente mulheres vem fazendo, no Brasil, enquanto o masculino clássico estrebucha e nos chama, de ‘chatas’, no mínimo. Entenda, quase todo mundo se pasma com o estupro. Só que esse crime não vem do nada. Ele é o resultado de um jogo coletivo de muitos erros, alguns bem sutis. Feminismo serve também pra isso. Pra estudar problemas e pensar em como ir resolvendo na raiz. Sabe ‘não é não’, ‘meu corpo minhas regras’ e outras tantas campanhas para as quais monte de gente ‘boa’ torce o nariz? Pois é tudo parte desse esforço - principalmente feminino - coletivo.

Não prenderam os caras ainda, dizem que não há pistas. Mas eu tenho. Vamos lá: o que sabemos sobre os estupradores do Carnaval de Salvador? Que são homens imersos na masculinidade mais ordinária e rasteira. Possivelmente, chamam mulheres de ‘vagabundas’, nem que seja ‘de brincadeira’. Seguramente, são péssimos de cama, mas devem se achar delícia com o sexo todo centrado na p*ca. Dificilmente respeitam qualquer mulher, mesmo as da própria família. Arrogantes com mães e irmãs. Talvez agressivos. Interrompem as falas, gritam. Sou capaz de apostar que mijam a latrina toda e esperam que elas limpem. Eu poderia seguir escrevendo mais dezenas de características comuníssimas e alguém diria ‘mas nem todo homem’. Claro que não. Mas sempre um deles. Normalmente, um tipinho típico e é justamente esse o maior problema.

(Tem que prender os estupradores, mas destruir, em todos os âmbitos, a ideia de que mulher é ‘coisa’ também é urgente.)

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo