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"Nos mandaram aqui pra morrer", disse outro, também em mensagem para a família
Da Redação
Publicado em 12 de março de 2022 às 11:00
- Atualizado há um ano
Eu já acho as explicações de meu filho, sobre essa guerra, rebuscadas demais. Me perco no meio, assim como disperso nas explicações mais especializadas do maior especialista que houver em relações internacionais. Talvez, de tanto estudar o tema, Leo já tenha começado a perder o olhar que se dirige pela primeira vez ("qu'est que ce la philosophie"), se espanta e faz perguntas inaugurais, aquelas que trazem a curiosidade original sobre a coisa. O olhar ainda antes de assumir que aquilo - neste caso a guerra - é algo "visto", quase "normal", justificável por recuos ou avanços de fronteiras, tratados internacionais e afins.
É incrível que ele já guarde, aos dez anos, tanta informação e possa fazer leituras tão profundas e críticas. Principalmente quando comparo à minha impossibilidade. No meu caso, há uma absoluta falta de memória para histórias de conquistas, motivações de conflitos, datas de fundação de cidades ou quedas de impérios. Interesses comerciais, então... neles me perco. Assim como na sucessão dos poderosos mundiais. Não tenho, sequer, qualquer amor especial a um pedaço de terra demarcado ao qual, por acaso de migrações, "pertenço" e devia sentir "meu". Não é. Não sinto.
Fotos oficiais, bandeiras, uniformes, siglas. Não consigo. Pra mim, apenas não faz sentido assim como passaportes e vistos. Eu sei, um olhar "infantil". Paladar pouco desenvolvido para as questões que se dizem "sérias", mas me parecem apenas provas da limitação humana, essa mania de tornar importantes coisas banais (e vice-versa) diante de tantas possibilidades de existência. Quase como as regras que se colocam entre crianças e adultos, a rigidez de métodos de "educar" que só nos afastam da experiência única e original de sermos filhos/as, mães e pais.
Mas, divago. Sobre os grandes acontecimentos históricos, daquela visita ao campo de concentração de Dachau, eu trouxe, principalmente, a imagem da roupa listrada que vestiam nas crianças. Também os sapatinhos de madeira nos quais parei os olhos por muito tempo e me dóem até hoje. Toquei nas camas estreitas onde os sequestrados dormiam empilhados e andei no caminho que leva aos crematórios, refazendo o percurso de indivíduos condenados à morte por que mesmo? É do que lembro.
"O que é isso?" me perguntei durante aquelas horas e em muitos dos dias que se seguiram. O que é isso? Olhando para os alemães ao meu redor, nos biergarten, pensando em que coisa aconteceu dentro daqueles humanos, em determinado tempo, para que permitissem Dachau. Hoje, morrem de vergonha. O amigo que me hospedou nem queria que eu fosse ao campo, como se, assim, pudesse evitar que eu visse algo que dizia dele e devia ficar escondido.
Busco epifanias, eu sei. Revelações que me acontecem ao ver pessoas e não o todo impessoal chamado de "exército", "pelotão" e outros coletivos que transformam gente em coisas a serviço do gozo de dois ou três "líderes" e interesses "importantíssimos" como uma linha imaginária estar mais pra lá ou pra cá. A epifania dessa guerra chegou na semana passada, quando todos puderam ver que o "soldado russo" é só um adolescente assustado chorando pela mãe.
Assim como os "ucranianos que o capturaram" são só mulheres segurando toalhas, oferecendo comida e garantindo à mãe russa "ele está vivo e bem, vocês se falam mais tarde". Viu essas imagens? Tem também a mulher que morreu, tentando fugir, com dois filhos e o cachorrinho enquanto o marido cuidava da própria mãe com covid. Essa era a única existência que tinham. Percebe o absurdo? Procure essas histórias e não são só elas. Esse conflito - que parece ser o mais perigoso depois de finda a Guerra Fria - tem chegado em detalhes, aos nossos celulares, todos os dias.
É, em tempo real, a prova do nosso doloroso ridículo. Que talvez não vejamos mais na "guerra ao tráfico" porque já nos acostumamos, por exemplo. Mas é a mesma coisa. Tão sem sentido quanto. Tão adolescentes quanto. Tão assustados quanto, chorando pelas mães. Não consigo ver OTAN, Rússia, Ucrânia, EUA naqueles meninos. Nem eles estão vendo nada disso. "Nos mandaram aqui pra morrer", disse outro, também em mensagem para a família. Os soldados do tráfico também são mandados pra morrer. Apenas. Da mesma maneira, os que tomam os morros de assalto. Por questões que não lhes dizem respeito.
Não são "as tropas russas". Não são "os traficantes", não é "a polícia". Percebe? Eu, sim. Um olhar que não vai resolver grandes e eternos conflitos, mas, talvez, não compreender a "importância" dos motivos seja um bom caminho. Estranhar pode ser bom, às vezes. Olhar para a coisa como se fosse a primeira vez. Ao não entender - talvez com nada disso fazendo sentido - é possível ver a banalidade das falas dos "grandes líderes", por exemplo. Aí a conclusão é que temos guerreado, em muitos âmbitos, na maior parte das vezes, por razões bem risíveis. Já pensou a liberdade que é perceber isso? Talvez seja essa a única paz possível.
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo