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Publicado em 22 de junho de 2024 às 11:00
Toda vez que voltamos a discutir a situação do aborto no Brasil, a expressão surge de novo. Na melhor das intenções - eu sei - sempre aparece alguém pra dizer que ‘o aborto masculino é legalizado’. Entendo perfeitamente a tentativa. Mas, veja, tá errado e posso provar. >
Esse termo nasceu nos Estados Unidos e não consegui descobrir quando. O que eu sei é que lá - onde a interrupção da gravidez é legalizada - homens se reuniram pra fazer a homice de exigir que o mesmo amparo legal fosse concedido a eles, quando quisessem abrir mão da paternidade. De filhos já nascidos, claro. Olhe a viagem. >
Um caso óbvio de falácia da falsa equivalência que, evidentemente, não deu em nada porque, né? Não dá. Porém a expressão ficou aí pra ressuscitar de tempos em tempos, nas bocas de gente que quer ajudar, mas acaba empurrando a pauta pra trás. Observe: homens abandonam filhos vivos, e isso é muito mais grave do que abortar.>
É o que eu acho? É, sim. Mas também o que está no conjunto de leis que regem o Brasil, esse Estado (pelo menos por enquanto) laico. Zigotos, mórulas, blástulas, gástrulas, nêurulas e mesmo fetos, ou seja, humanos em fase de desenvolvimento intrauterino, não são pessoas com direitos. O que eles têm se chama ‘expectativa de direitos’, pode pesquisar.>
O que é ‘expectativa de direitos’? É quando um conjunto de direitos está na iminência de ocorrer, mas ainda não existem ‘direitos adquiridos’, pois não foram cumpridos os requisitos exigidos por lei. Quer dizer, você achando certo ou errado, legalmente, antes de nascer, nenhum humano é sujeito. Só quando nasce que passa a ser. >
Por isso, aborto não é assassinato, sacou? Por isso que em diversos países, interromper gravidez (sem condicionantes) faz parte dos direitos reprodutivos femininos. Com o que concordo plenamente, desde a mais tenra idade. Cada mulher sabe de si.>
(‘Ainnn, mas deus, mas o espírito já encarnou, mas que coisa horrível, mas a criança quer nascer, mas pode dar pra adoção, mas não sei quantas semanas, mas transou porque quis’. Deixe de presepada que você não está no Congresso Nacional. Crenças individuais valem para a vida privada. Bora conversar como gente séria? Obrigada.)>
Agora, depois de nove meses (meu filho foi com quase dez) a criança nasceu. Tem nome, certidão de nascimento e o quê? DIREITOS. Garantidos por lei. Inclusive direito ao afeto, ao lazer, à educação, saúde e todos os cuidados que filhotes humanos precisam para crescer em paz. Pois é justamente nesse momento que genitores se eximem - parcial ou completamente - de suas obrigações legais. Milhões deles. A isso, chamamos de ‘abandono paterno’ e, contra esse crime (agora, sim), nunca na minha vida vi a sociedade tradicional brasileira se revoltar. >
Percebe a diferença? Espero que sim. Também que tenha entendido o quanto é problemático tentar comparar aborto a abandono. O ‘aborto masculino’ não é 'legalizado' porque ele não existe. O que existe é uma coletividade acostumadíssima com a atuação criminosa de milhões de homens que são pais ausentes. Tão acostumada que sequer se organiza para cobrar deles que assumam os filhos sobre os quais têm 50% de responsabilidade. >
Mulheres abortam (sempre abortaram e sempre abortarão) por muitas questões individuais e coletivas. Entre as coletivas, falta de acesso à educação sexual e métodos de contracepção, pobreza e violência (quantas gravidezes resultam de estupros no seio da ‘família tradicional’ e dentro entidades estruturantes), por exemplo. Ou seja, por problemas nossos. Muitas de nós, também, pela compreensão de que as chances de serem abandonadas com um bebê no colo são altas. Porque é isso que dizem os números, é isso que percebemos olhando ao redor e nem sempre estamos prontas para assumir sozinhas a missão.>
Fetos abortados são pessoas que não existem. Por outro lado, hoje, no Brasil, existem quase 111 mil certidões de nascimento sem o nome do genitor. As varas de família estão lotadas de mulheres implorando por pensão alimentícia para crianças vivas feitas a dois. Mais da metade dos lares brasileiros são sustentados por mulheres. São 38,3 milhões de mães se virando para cuidar de si e dos filhos (muitas vezes também de netos) abandonados (e não abortados) pelos pais.>
É isso que devia revoltar a todos. A vida de crianças com direitos garantidos por leis que não se cumprem, na prática. A postura de um judiciário que segue misógino, favorecendo os tais genitores em todas as oportunidades. A suavidade com que tratamos homens e suas típicas irresponsabilidades. Até no ato falho de chamar de ‘aborto’ algo que é muito mais grave. O nome certo mesmo, pra mim, inclusive, é abandono de incapaz. Que tem pena prevista, basta querer enquadrar.>
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo>