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Flavia Azevedo
Publicado em 27 de maio de 2025 às 13:16
Sabemos que usar documento adulterado é crime (previsto no artigo 304 do Código Penal) e a maioria de nós não anda por aí cometendo essa transgressão. Inclusive porque, em tempos de reconhecimento facial, cadastros unificados e afins, as chances de o criminoso ser pego são altíssimas. Isso vale para RG, CNH, passaporte e até carteira de vacinação. Menos para ela que é presença confirmada em todos os shows e demais eventos de tudo que é tipo e qualidade. Você já se perguntou por que ninguém liga para “carteirinhas de estudante” tão falsas quanto notas de R$ 3,00? Pois existe uma explicação.>
Aviso logo que não tenho uma carteirinha falsa (nem verdadeira), mas convivo com a sensação de que se eu pegar um papel e escrever “sou estudante, é verdade esse bilhete”, pago meia-entrada no próximo show que quiser ir. Se alguém questionar, terei argumentos para discutir. Basta que eu peça “me mostre o modelo verdadeiro pra gente comparar” e não há portaria ou produção que possa atender ao meu pedido. É que não tem um padrão. Ou seja – diferentemente de todos os outros documentos importantes – não existe um modelo oficial de carteira de estudante no Brasil. Então, vale o que você mostrar. Se precisar mostrar, claro. Na maioria das vezes, nem isso é solicitado.>
É óbvio que - com tempo e muita disposição - dá pra seguir algumas pistas e encontrar indícios da fraude. Porém, é tudo bem subjetivo. Na internet – além de abundantes tutoriais sobre como “fazer você mesmo” o documento - encontrei dicas do que pode inspirar desconfiança. “Carteiras legítimas geralmente têm hologramas e marcas d'água”, dizem, por exemplo. Mas “geralmente” não é sinônimo de “obrigatoriamente” e, depois, como seriam esses hologramas e essas marcas d´água? Mais ainda, é obrigação do pessoal da portaria investigar veracidade de documento? Se sim, essas pessoas foram treinadas para a função? Veja, são várias questões e a maior delas é: quem se interessa por acabar com essa fraude?>
Poder público não cuida disso e produtores de eventos também não. "Honestamente, depois da implementação da Lei da Meia Entrada (que limita a 40% a cota obrigatória de ingressos vendidos com desconto de 50%), para o produtor, a existência de carteiras de estudante falsas e sua quantidade não faz mais diferença em termos financeiros. Para começar, esse é um benefício que o governo oferece mas que não sai do seu orçamento. Quem acaba pagando pelo benefício é a própria sociedade. À medida que somos obrigados a oferecer 50% de desconto sobre o nosso produto (sem receber nada em troca), inevitavelmente o preço do ingresso vai subir. É uma matemática simples, pois alguém tem que pagar a conta! Qual é o outro setor que é obrigado a oferecer tamanho desconto sobre o produto do seu trabalho? É fato que ficamos incomodados com as falsificações, porém não é nossa obrigação fazer essa fiscalização. Além do que, isso seria praticamente impossível; visto que não existe uma padronização nem mecanismos de segurança claros que nos permitam distinguir uma carteira verdadeira de uma falsa. Portanto, quem criou a Lei, que crie e implemente também os mecanismos de fiscalização", afirma Moacyr Villas Boas, que é produtor cultural e Presidente da ABAPE (Associação Baiana das Produtoras de Eventos).>
Entendeu, né? Com a fiscalização impossível e zero contrapartida, o que produtores fizeram foi cuidar dos próprios interesses. Depois de conseguirem fixar 40% como percentual máximo obrigatório de meias-entradas em cada evento, apenas aumentaram o valor dos ingressos e seguiram o baba. É por isso que, muitas vezes, a “meia” tem um valor longe de ser popular e a “inteira” é sempre o dobro do que parece razoável pagar. Sinceramente, não me sinto autorizada a julgar. Já pensou ser obrigado, por lei, a dar 50% de desconto em seu trabalho pra todo mundo que apresentar um documento que você nem tem como saber se é real? Que louco seria, né não?>
Então, ficou assim: poder público sem qualquer ônus e produtores culturais com planilhas ajustadas. Em todos os eventos, 40% de ingressos precisam ser, obrigatoriamente, vendidos pela metade do preço, especificamente para idosos, pessoas com deficiência, jovens de baixa renda e estudantes. É disputando esses 40% que estão todas as pessoas que usam carteirinhas de estudantes falsificadas. Ou seja, os fraudadores, no fim das contas, não roubam produtores nem poder público, que são os que teriam força pra fiscalizar. Os prejudicados pelos “espertos” são idosos, pessoas com deficiência, jovens de baixa renda, estudantes verdadeiros e quem paga inteira por não fraudar. É justamente por isso que ninguém liga. Concorda que tá explicado? >
(E la nave va.)>
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