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Flavia Azevedo
Publicado em 1 de agosto de 2025 às 06:00
Ele já foi acusado de machista e homofóbico, bateu de frente com coletivos, criticou dogmas do movimento negro e vive às turras com colegas da universidade. Fernando Conceição - jornalista, pesquisador e professor da Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) - prefere o isolamento à submissão: diz o que pensa, sem pedir licença nem esperar aprovação. “Intelectual não pode viver de aplauso”, resume. É com esse espírito provocador que ele fala também de Milton Santos (1926 - 2001), o geógrafo baiano consagrado no mundo. Às vésperas do centenário, Conceição promete biografia que revela um Milton cheio de grandezas e contradições - um homem de carne e osso, e não um santo. Leia a entrevista.>
Flavia Azevedo - Você já foi alvo de ataques dentro da UFBA por posições controversas. Isso se deve à intolerância com divergências no campo progressista, ou você “exagera” mesmo?>
Fernando Conceição - Às vezes sinto a necessidade de ultrapassar um pouco o limite, exatamente para provocar. Estamos numa instituição de debate, o professor tem autonomia didática. Mas meu limite é a ética, o respeito. Quem foi meu aluno sabe disso. Mesmo quando fui acusado de machista ou homofóbico, recebi apoio dos alunos. O problema é que meus colegas, em geral, preferem silenciar.>
Você critica, de forma recorrente, “dogmas” do movimento negro, mas outro dia convidou Carla Akotirene, muito associada a esses dogmas, para uma palestra. Foi contradição, provocação ou tentativa de conciliar diferenças?>
Eu sempre convido pessoas para minhas aulas. Um aluno sugeriu Carla Akotirene e a convidei. No dia, ela falou, eu sustentei. Depois, com os alunos, perguntei: vocês não acharam contradições? Claro que não iria contestar ali, na frente dela, como convidada. Uma amiga minha até brinca que Carla parece cantor de rap: você entende até a segunda frase, depois vira “samba do crioulo doido” (risos).>
Em dois casos recentes - a morte de Juliana Marins e a reprovação de uma professora negra da UFBA em estágio probatório - você foi crítico ao que chamou de manipulação de pautas identitárias, quando as pessoas associaram tanto a morte quanto a reprovação ao racismo. Quem tem ultrapassado o limite entre reivindicações legítimas e mera “lacração”?>
Esse limite tem sido ultrapassado pelas próprias redes sociais. Os algoritmos estimulam isso: todo mundo tem algo a dizer de forma peremptória. Essa banalização é uma falta de respeito. Em vez de respeito à morte, transformam em pauta identitária, por exemplo. Vejo influencers que sempre têm algo a dizer, porque vivem da métrica: “qual é o assunto de hoje? É racismo”. Mas muitas vezes sem responsabilidade.>
Fernando Conceição
Professor da UFBAEssa “militância de ocasião” costuma vir acompanhada de exclusões internas, no ambiente acadêmico?>
Sim. Ela fala através de coletivos. Eu, por exemplo, nunca falei através de coletivos. A intelectualidade é um ato individual. Não há ato de criação feito coletivamente: todos os grandes atos foram de indivíduos, depois apropriados pelo coletivo. Quando alguém fica em busca constante de aplausos, aceitação e seguidores, demonstra falta de substância e carência. Quem precisa me aprovar, me aceitar, sou eu mesmo.>
Você acredita que a ascensão de pessoas negras nos meios acadêmicos e culturais significa avanço real da população negra como um todo nesse ambiente?>
O poder na universidade é controlado por brancos conservadores. Pode haver exceções, como um diretor negro na Faculdade de Medicina (da UFBA), mas ele funciona como “vacina” contra a crítica ao racismo institucional. No discurso, a presença negra serve para neutralizar a denúncia, mas na prática quem manda continua sendo a mesma elite de sempre.>
Fernando Conceição
Professor da UFBAVocê está buscando apoio para uma biografia de Milton Santos e comentou que uma das barreiras dessa captação pode estar ligada à sua imagem pública. Em que sentido sua postura pesa contra o projeto?>
Sim, uma das razões de até hoje eu não ter recebido um sinal positivo é o próprio autor da biografia - eu mesmo. Eu não sou ligado a nenhuma igrejinha, a nenhum movimento, a nenhum coletivo, a nenhum partido político. Muitas vezes critico coletivos, movimentos, partidos. Então, como apoiar um projeto cujo autor é esse cara? Só que não foi uma escolha minha, foi ele quem me escolheu.>
Como foi essa escolha?>
Eu não o conhecia pessoalmente, mas fui fazer pós-graduação na USP, no início dos anos 1990, e ele já era professor lá. Nós tínhamos o Núcleo de Consciência Negra, que eu coordenava. Criamos uma atividade semanal de convidar palestrantes, e um deles foi Milton Santos. A partir daí, mantivemos laço. Eu também colaborava com a Folha de S.Paulo. Quando houve a homenagem por sua aposentadoria aos 70 anos propus ao editor do Caderno Mais uma entrevista longa. A Folha aceitou. Fizemos mais de duas horas de conversa na casa dele e ali surgiu a ideia da biografia. Ele me disse: “Muita gente tem me pedido autorização, mas vou autorizar você”. Ele formalizou a autorização em 2000. Estava doente, com câncer, e me mandou carta em Salvador. Foi uma escolha dele. Eu não pedi, ele poderia dar a qualquer outra pessoa. Hoje a legislação não exige autorização para biografia, mas considero importante ter esse documento. Eu disse a ele: não vou escrever sobre um santo. Vou escrever sobre o homem, com montanhas e planícies. Talvez por isso haja desconforto até hoje entre alguns ligados a ele.>
Fernando Conceição
Professor da UFBAEssa nova biografia será também uma disputa de narrativa? Você a entende como gesto político?>
Sim. Milton Santos não é unanimidade. Tentaram torná-lo patrono da geografia brasileira, mas não passou. Eu entrevistei geógrafos que o criticam. A biografia vai mostrar que ele não era consenso. Seu pensamento foi abraçado por setores da esquerda, mas ele repeliu esse utilitarismo. Dizia que o intelectual não deve se prender a seitas ou partidos, mas ser autônomo. Capturá-lo é um crime. Ele criticava o setor financeiro do capitalismo, não o capitalismo em si. Defendia que os avanços da ciência e da tecnologia fossem postos a serviço da humanidade. Sua ideia de “outra globalização” vinha daí. Tanto setores da esquerda quanto do movimento negro tentam capturá-lo, mas Milton nunca foi militante.>
Há quem diga que ele foi silenciado em vida por todos os espectros ideológicos. Você concorda?>
Sim. Tanto à direita quanto à esquerda houve tentativas de enquadrá-lo. Ele resistiu. Essa resistência o isolava, mas também o tornava maior.>
Leia carta de Milton Santos e veja outros documentos da biografia
Então, essa busca por autonomia total resultou em isolamento?>
O tempo todo ele perseguiu - e é isso que eu, como biógrafo dele, tento perseguir também - a autonomia total. E isso implica isolamento. Claro que ele é louvado, depois que houve o reconhecimento internacional, em 1991, quando ganhou o Vautrin Lud, equivalente ao Nobel de Geografia. Mas ninguém sabe as durezas que passou até chegar lá.>
Há alguma parte da trajetória dele que segue ignorada?>
Há muitas histórias ignoradas. Por exemplo: Milton Santos foi um dos primeiros professores da universidade a ser preso e incomunicável. Foi levado para o 19º BC, depois transferido para o quartel de Amaralina. Em seguida veio o exílio. No início, ficou em situação de instabilidade na França, aceitando contratos temporários em Toulouse, Bordeaux, Sorbonne. >
Quando esses contratos acabaram, houve um convite para uma universidade em Londres. Ele já estava casado com a francesa Marie-Hélène. Foram juntos, com passagens pagas pela instituição. Enquanto buscavam imóvel, quando ela ia sozinha, era bem recebida. Quando ele se apresentava, mesmo com toda a documentação de professor convidado, havia sempre objeção, a ponto de desistirem de contratos. Essa é a marca da negritude dele, que gerava restrições. Estamos falando do início dos anos 1970, em Londres.>
Assim como na experiência com a segunda esposa, fora do Brasil, o primeiro casamento, com Jandira Rocha, no interior da Bahia, também foi marcado por racismo?>
Sim. Ela era filha de fazendeiro do cacau. O racismo bateu gritando em cima. Naquele tempo, a diferença de idade (muito grande no casal) não era tão levada a sério quanto hoje. Então, se ele fosse filho de outro fazendeiro, dava-se um jeito. Mas como não era, a família a deserdou. Casaram na véspera do Natal, com apenas duas testemunhas. Depois, praticamente fugidos, vieram para Salvador.>
Ele se separa de Jandira depois de viver episódios conturbados pessoais. Como você interpreta esse lado?>
Acredito que houve incompatibilidade intelectual entre eles. Ela estagnou, tornou-se comerciante, abriu boutique. Já ele era doutor em Estrasburgo, negro, elegante, editor de A Tarde, professor da Universidade da Bahia. As brigas do casal foram cinematográficas, de ela pegar as roupas dele, invadir laboratório, querer bater em alunas. Houve alunas que tentaram suicídio por amor a ele. Era esse tipo de relação, sempre muito intensa.>
Ele é descrito como elegante, sedutor e cercado de admiração. Esse traço pesava na trajetória acadêmica e social?>
Sim. Ele se vestia muito bem, usava ternos, circulava na Rua Chile, onde a elite política e intelectual se encontrava. Falava francês, era elegante, sorridente, sedutor. Provavelmente por isso tantas alunas se apaixonavam. Uma delas, no dia em que a esposa invadiu o laboratório, o levou no Fusca dela para o edifício onde ele se hospedou. Tenho recibos desses hotéis. Era um homem que atraía admiração, e isso fazia parte também da sua presença pública.>
Fernando Conceição
Professor da UFBAMilton Santos é um nome que todos conhecem. Você considera que a obra dele tem sido lida ou o que há hoje é apenas a “fama do personagem”?>
Quem entra na Geografia conhece a obra, muito específica, que Milton Santos dedicou-se a construir. Agora, poucas pessoas conhecem o personagem. E autorizado por ele, eu fiz essa pesquisa nos últimos 25 anos para revelar o personagem Milton Santos, desde o nascimento em Brotas de Macaúbas até a sua morte em São Paulo. Então, a biografia não é para falar da obra geográfica de Milton Santos, e sim para falar do homem, nos seus altos e baixos.>
Como anda a captação para a biografia, atualmente? >
Desde novembro de 2024, eu fui a campo, contatando empresas privadas e fundações. Eu tenho acesso a algumas pessoas, principalmente ligadas ao movimento negro, que estão nessas instituições como managers, como CEOs. Todos recebem muito bem - “a ideia é boa, necessária” - mas não se comprometeram. Cheguei à conclusão de que terei que fazer de qualquer forma. Desde abril, tenho dialogado com um político importante. Vai haver o centenário dele, o próximo ano é um ano eleitoral, então me parece que interessaria ao próprio Estado da Bahia fazer essa homenagem. Eu sei que haverá homenagens, possivelmente uma sessão solene na Assembleia Legislativa, na Câmara de Vereadores, essas coisas que passam muito rápido. Mas o que tento dialogar com esse pessoal é que Milton Santos merece muito mais do que uma sessão solene ou dar nome a uma rua. >
Por fim, que imagem de Milton Santos você gostaria que ficasse do centenário: a do mito ou a do homem contraditório?>
A do homem contraditório. O mito já está aí. É preciso mostrar o humano, com grandezas e fragilidades. Essa é a melhor homenagem: não um santo, mas um homem que ousou pensar e viver com autonomia. >
Quem é: Professor da Faculdade de Comunicação da UFBA, jornalista e pesquisador, Fernando Conceição construiu trajetória marcada por independência intelectual e embates com coletivos e movimentos sociais. Foi militante do movimento negro na USP nos anos 1990 e teve laços próximos com Milton Santos, de quem recebeu autorização formal para escrever a biografia. É considerado uma das vozes mais polêmicas da academia baiana. >
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