Acesse sua conta
Ainda não é assinante?
Ao continuar, você concorda com a nossa Política de Privacidade
ou
Entre com o Google
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Recuperar senha
Preencha o campo abaixo com seu email.

Já tem uma conta? Entre
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Dados não encontrados!
Você ainda não é nosso assinante!
Mas é facil resolver isso, clique abaixo e veja como fazer parte da comunidade Correio *
ASSINE

Com argumento de “humanizar”, Brasil fecha manicômios judiciários e liberta criminosos

Fim dos hospitais de custódia é vendido como avanço, mas sem rede estruturada vira ameaça real para todos nós

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 20 de junho de 2025 às 16:57

Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia também será fechado
Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia também será fechado Crédito: Reprodução

Em 2023, o Brasil decidiu que não faz mais sentido manter os manicômios judiciários em funcionamento, que os criminosos que vivem internados devem ser tratados pelo SUS, morando cada qual na própria casa. Em seguida, essa ideia foi colocada em prática por decreto, sem plano, sem estrutura e, principalmente, sem amplo debate com a sociedade, muito menos com quem conhece a realidade dos internos que vivem nesses espaços. Então, até 2026, hospitais de custódia - onde hoje estão pessoas com transtornos mentais graves e histórico criminal (tipo assassinos em série) - devem ser completamente extintos em todo o país. O argumento? Humanizar. A prática? Jogar bombas-relógio na rede pública de saúde, nas famílias e nas ruas.

Em Salvador, por exemplo, o Hospital de Custódia e Tratamento (HCT), único manicômio judiciário da Bahia, já não recebe novas internações desde janeiro de 2024, e o fechamento total está previsto para dezembro deste ano. Segundo dados do Tribunal de Justiça da Bahia e apurações da imprensa, o número de internos já caiu de cerca de 250 em 2023 para 65 em março de 2025. Apesar dos esforços do Tribunal de Justiça da Bahia em articular com secretarias e municípios, ninguém sabe ainda muito bem como lidar com essas pessoas. Profissionais da área relatam casos preocupantes, como o de um interno considerado inimputável que foi transferido para um presídio comum, levantando sérias dúvidas sobre a adequação do suporte oferecido e o respeito aos direitos humanos.

Se, aqui de fora, eu percebo o tamanho do delírio, imagine quem entende do riscado. Segundo o psiquiatra forense Guido Palomba (escute esse cara), a extinção dos hospitais sem uma rede alternativa estruturada é irresponsável e incompreensível. Repare que ele sabe o que diz. Palomba acompanhou casos como o do Maníaco do Parque e o de Champinha. Entrevistou os dois, conhece pessoalmente e, segundo ele, ambos são incuráveis. Pesquise essas criaturas e veja que são pessoas que, fora do ambiente de contenção e vigilância constante, representam riscos reais para qualquer um que cruzarem na vida. Mas agora, segundo o novo plano do país, esses indivíduos serão acolhidos nos mesmos CAPS onde hoje se tratam quadros de depressão leve e ansiedade. Tá bom pra você?

Casos recentes mostram os riscos dessa política conduzida sem planejamento. Em outubro de 2024, no Rio Grande do Sul, um homem com histórico de esquizofrenia paranoide e homicídio, Edson Fernando Crippa, que havia sido liberado sem suporte ou monitoramento, desapareceu do radar do Estado e, meses depois, matou novamente. Desta vez, o pai e o irmão. O episódio foi tratado como exceção, mas os profissionais da área sabem que essa é a regra. Esquizofrenia paranoide. Qualquer psiquiatra pode lhe explicar o que significa esse diagnóstico associado a alguém que já matou. 

A confusão entre desospitalizar e abandonar é tão grotesca quanto perigosa. O psiquiatra Valentim Gentil, da USP, vai além: ele argumenta que o que estamos vendo é a implantação radical do projeto basagliano, que prega o fechamento total dos hospitais psiquiátricos sem nenhuma contrapartida para a população, caracterizando-o não como política de saúde mental, mas como um culto à desinstitucionalização.

Mesmo países que foram pioneiros na reforma psiquiátrica têm feito revisões críticas. Na Itália, berço do modelo antimanicomial, voltaram a discutir a reabertura de estruturas de contenção após uma série de episódios violentos protagonizados por ex-internos sem acompanhamento. O psiquiatra italiano Enrico Zanalda, ex-presidente da Sociedade Italiana de Psiquiatria Forense, aponta que é um erro acreditar que basta boa vontade para tratar quadros clínicos que exigem estrutura, equipe e protocolos claros. Ignorar essas lições, como o Brasil está fazendo agora, não é vanguarda, mas repetir, com menos recursos, os erros que outros já tentaram consertar. E quando se trata da interseção entre saúde mental grave e periculosidade, errar custa vidas.

Observe a matemática do caos: o Brasil tem cerca de 2.500 pessoas internadas sob medida de segurança. De acordo com levantamentos recentes de órgãos de justiça e saúde, só 21% delas têm acompanhamento ambulatorial. O restante está na iminência de ser “realocado” para lugar nenhum ou para dentro de casa, com famílias que, muitas vezes, não têm sequer como garantir alimentação regular, quanto mais suporte psiquiátrico e vigilância contínua. Fora todo o conhecimento técnico necessário para monitorar esses casos. Você tem? Eu não tenho. E seu vizinho? Terá?

O perfil desses pacientes é bem definido. São homens, em sua maioria, com histórico de violência, quadros psicóticos graves ou traços psicopáticos. Muitos nem têm consciência dos crimes que cometeram; outros têm e não sentem absolutamente nada a respeito. Estes são os temidos "psicopatas", aqueles que assassinam em série e com rituais pavorosos. Mesmo dentro da pauta legítima da luta antimanicomial - que busca a desinstitucionalização humanizada - a realidade desses casos que exigem contenção e vigilância diferenciada, não pode ser ignorada. Colocá-los em circulação sem supervisão intensiva não é apenas ingênuo, é cruel. Junto com eles, também se condenam os técnicos da saúde mental, as famílias e os outros usuários do sistema público, que vão dividir sala de espera com quem deveria estar em contenção clínica permanente.

O assassino Champinha está internado porque tem transtornos mentais por Reprodução

Agora, claro, quem ousa levantar esses dados e discordar da medida é imediatamente carimbado de retrógrado, desumano e adjetivos parecidos. A gente não é “bacana”, digamos, porque não quer ter o Maníaco do Parque como vizinho. O debate virou tabu, evidentemente. Questionar essa política é, para alguns, negar a luta antimanicomial quando, na verdade, é justamente o contrário: exigir responsabilidade. Uma transição não é feita na marra nem na base do improviso. É preciso rede estruturada, financiamento, capacitação e, acima de tudo, discernimento. Isso significa investir em ambulatórios especializados de alta complexidade, residências terapêuticas com segurança reforçada, equipes multidisciplinares treinadas para manejo de crise e avaliação de risco contínua, além de um sistema de monitoramento rigoroso para aqueles que representam perigo à sociedade.

O Brasil caminha para um desmonte institucional que atende mais ao apelo simbólico do que à necessidade concreta, a uma visão romântica do cuidado humanizado do que à realidade dos fatos. E quando a tragédia chegar — porque ela vem por aí —, não vai adiantar dizer que tinham ótimas intenções. Esse é um assunto da psiquiatria, são esses profissionais que devem protagonizar a discussão. É preciso respeitar competências, experiências, saberes e limites. Nem toda decisão cabe a políticos ou à militância. Sabia?

Siga no Instagram: @flaviaazevedoalmeida