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Flavia Azevedo
Publicado em 17 de junho de 2025 às 11:34
Como você sabe, o povo anda se estapeando até por aparelho de ginástica e a inabilidade cotidiana com o contraditório tomou proporções nunca antes imaginadas. Quando discordam, pessoas desejam matar de forma simbólica ou literal. Isso porque passaram a acreditar que suas questões íntimas e individuais devem nortear vidas de terceiros e, por outro lado, estão completamente vulneráveis às opiniões de qualquer um. Sinceramente, acho que essa disfuncionalidade generalizada é o nosso maior problema - inclusive profissional - e não o avanço das tecnologias e IAs. No futuro, imagino que os anúncios de trabalho serão algo como “aceitamos currículos de pessoas com qualquer formação, mas minimamente equilibradas”. E vai ser difícil encontrar. >
“Não pode perder a cerimônia com quem a gente não tem intimidade”, Mainha me ensinou e eu sei o quanto isso me vale em tempos de limites tão esgarçados. De vez em quando, frequento caixas de comentários de redes sociais e sempre fico abismada com o caos. Ou, então, o susto é presencial, como no dia em que a vendedora se irritou porque escolhi o quiche de alho poró e não o que ela havia me recomendado. Quando é assim, apenas calo, sorrio e saio. Eu, que vivo também de escrever, tenho que estar especialmente preparada: das menores loucurinhas é a moça dizer, dia desses, que não sabia se meu texto era de “fã ou hater” porque, aparentemente, pra ela, só existem essas duas possibilidades. >
Sempre precisaremos de alguém pra ocupar aquele cargo de liderança, gerir equipes importantes, dar vereditos, tomar decisões seríssimas que significam vida ou morte. Continuaremos demandando profissionais para alfabetizar crianças, lidar com adolescentes, fazer análises críticas dos acontecimentos. Mas, independentemente do preparo formal, quem será capaz? Alguém que é disfuncional a ponto dar bater no outro porque foi fechado do trânsito ou arranhou o carro? Pessoas que não conseguem entender a diferença entre o que é público e o que é privado? Gente que acha que todas as pessoas lhe devem algo e que precisam ser validadas por cada olhar? Imagina numa crise, imagina diante de problemas sérios, imagina nos desafios da vida real? >
Sim, estamos todos meio sequelados e me incluo nisso, em parte. Estou atenta e, justamente por isso, sei que já fui mais saudável. Foi a covid, é o excesso de telas, é a virada de século com suas confusões esperadas, são nossos cérebros se adaptando aos novos estímulos, são o efeitos colaterais das novas tecnologias, é a testosterona que o povo anda tomando em litros pra chegar ao ”shape ideal”, é... sei lá. Talvez, sejam “os idiotas” tomando conta do mundo, cumprindo a profecia rodriguiana, naquela frase que antes era só engraçada. Ninguém sabe.>
Na academia, as pessoas parecem estar todas “de mal”, confundindo cara feia com concentração. Sequer se falam. Outro dia, numa dessas caixas de comentários, o povo tava acabando com aquela moça gorda porque ela fez uma cirurgia bariátrica. Não entendi nada. Depois, vi uma mulher adulta desabafando em público um sofrimento imenso porque a criança desconhecida disse que ela é feia. “Pai de aluno agride criança de quatro anos durante festa junina de escola”, é outra notícia que acabei de ler no jornal. >
Fora quem diz uma coisa e desmente no momento seguinte, o que fazem o tempo todo, em todos os âmbitos, na maior cara de pau. Há poucos anos, tudo isso era caso de, pelo menos, destoar. Só que hoje qualquer coisa cabe no que chamamos “normal” e, lá na ponta, inclui também o adulto que acha que é um passarinho e passa os dias em cima do telhado comendo alpiste e sustentado pelos pais. Observe que nem estou comentando as situações que, nas raras unanimidades, todo mundo considera abomináveis e também estão por todo lugar.>
As pessoas se odeiam terrivelmente com base na opinião sobre intimidades como preferir cesariana ou parto natural, achar que cachorro é filho ou animal, se relacionar com pessoas de outras etnias ou só se for igual. Não uma ou duas pessoas, não apenas um vizinho meio esquisitão, mas grupos imensos, muitas vezes até organizados. Esse é o ridículo, esse é o nível da nossa disfuncionalidade. Tem gente que já entendeu, claro, e, com certeza, está aprendendo a tirar vantagem. >
(“Enquanto uns choram, outros vendem lenço”, não é assim o ditado?)>
Saúde mental vale dinheiro, saiba. Pela escassez, logo será um dos royalties mais caros do mercado, do mesmo naipe de água. Daqui a pouco, será raridade, acho. E nem estou me referindo ao crescente número de casos de distúrbios psíquicos diagnosticados e que, com isso, podem ser tratados. O problema é a massa humana, as multidões agindo de maneira completamente disfuncional, sem perceber o desastre. >
Sempre foi assim? De jeito nenhum. Lembro claramente de ambientes coletivos bem mais equilibrados, de posicionamentos mais lúcidos, de quando eram comuns conversas muito mais sensatas na faculdade, no curso de teatro, na capoeira, na academia de ginástica, no trabalho, nos botecos da cidade. Claro, nada é estático. Aquele momento passou e esse também vai passar. Assim espero. Quem sobreviver a tudo isso – sem rasgar dinheiro nem comer cocô, ao vivo, nas redes sociais – possivelmente verá. Talvez, até, ganhando bem em um excelente trabalho. >
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