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Flavia Azevedo
Publicado em 5 de junho de 2025 às 16:14
No Brasil, nenhuma prática sexual é proibida, desde que consensual e entre humanos adultos – de qualquer gênero - capazes de decidirem por si. Ou seja, em privacidade, podemos fazer o que der vontade, submetidos apenas às nossas crenças, orientações e desejos individuais. Nessas condições, fetiches são amplamente permitidos. Ciente de tudo isso, o jornalista Glenn Greenwald confirmou a autenticidade de vídeos divulgados na internet, nos quais aparece vivendo uma interação sadomasoquista. Tranquilamente, também afirmou que não sente "nenhum constrangimento ou arrependimento" pela experiência que viveu com aquele parceiro eventual. Em seguida, ele sustentou que a única irregularidade no fato foi a “publicação criminosa e maliciosa” dos vídeos e avisou que vai processar o criminoso. Sinceramente, há muito tempo não vejo manifestação pública de tanta honestidade e equilíbrio. Venha cá entender o caso e pensar comigo. >
Esses vídeos surgiram online nos últimos dias. Nas gravações, Greenwald está vestido de “empregada doméstica” e é insultado por um homem não identificado que o chama de "escravo". Num primeiro olhar, pode parecer uma violência, mas o próprio jornalista deixou claro que se trata de uma sessão de dominação fetichista, ao afirmar que as ações foram consensuais e entre adultos. Só que, no combinado entre as partes, a interação deveria permanecer privada, mas foi tornada pública. Agora sim, sem o consentimento de Greenwald e esse é o único problema. Veja que a vítima do "exposed" não disse que as imagens foram manipuladas, não alegou que é Inteligência Artificial, não publicou vídeo chorando, não disse que foi “forçado” nem falou em “mal-entendido”. Ele não cedeu ao lugar comum. Pelo contrário, evocou os próprios direitos - tanto à sexualidade quanto à privacidade - e, com isso, elevou o nível da discussão para o único ponto que é de interesse coletivo. >
Repare: por mais que você possa estar tentado a julgar o fetiche alheio, a sua conclusão serve apenas para a sua própria vida. Porém, todos nós compartilhamos o crescente risco de termos intimidades expostas e essa é a questão. Por exemplo, com câmeras cada vez mais “invisíveis”, nada garante que não serei (ou até já fui) filmada – em qualquer hotel, motel ou Airbnb – em interação sexual com meu parceiro. Pra você também não há nada garantido, acredite. Veja, ainda, que, até o momento, a punição para quem comete o crime de divulgar imagens íntimas de terceiros parece sempre mais branda do que o impacto que essas exposições têm nas vidas das vítimas. Há gente que se suicida ao ser exposta, há casos de chantagens terríveis. Portanto, "violação da privacidade sexual" é o nome do problema para o qual a nossa atenção precisa estar direcionada e não a banalidade das fantasias e práticas íntimas de outras pessoas.>
A verdade é que, além de tantos outros, nosso tempo traz mais esse desafio coletivo. Tecnologias em rede possibilitam novas violências como voyeurismo digital, câmeras escondidas, "deep-fakes" e pornografia não consensual. Com tudo isso, há uma assustadora ampliação de alcance e possibilidades da exposição de pessoas, em diversos níveis . Conforme sabemos, esses crimes atingem principalmente mulheres e minorias sexuais, resultando frequentemente em estigmatização, dificuldades profissionais, humilhação e todos os impactos psíquicos disso. Por outro lado, a nossa legislação de privacidade continua baseada em conceitos desatualizados, ainda incapaz de dar conta das novas ameaças que sofremos. Esse é o recado no caso de Glenn Greenwald. Que também serviu, claro, para mostrar que o BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) é um conjunto de práticas ainda marginalizado, porém frequentadíssimo. Procure saber dos clubes, das festas, dos encontros e depois me diga.>
(Privacidade sexual é um conceito que abrange a gestão de informações e o controle sobre o corpo, sexualidade e atividades íntimas de um indivíduo. Ela envolve a capacidade de decidir o que compartilhar, com quem e em que medida, incluindo a exposição do corpo, comunicações sobre sexo e até mesmo a ocultação de espaços físicos íntimos.)>
(Glenn Greenwald é um jornalista, autor e ex-advogado americano ganhador do Prêmio Pulitzer. Fundador do The Intercept e do The Intercept Brasil, ele é abertamente gay e viúvo do ex-deputado brasileiro David Miranda.)>
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