Tranquilo. Dezembro também vai passar.

“Que o espírito de Natal não invada a sua alma inteira”, dizia um amigo, há décadas.

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 2 de dezembro de 2023 às 11:00

Calma. Você sabe que não precisa, agora, fazer uma lista de “resoluções de ano novo” nem o "balanço pessoal" de 2023 nem arrumar todas as peças do seu guarda-roupas nem comprar 17 mini panetones pra distribuir entre conhecidos. Do mesmo modo, você tem ciência de que nada lhe obriga a participar das “confraternizações”, encontrar meio mundo de parentes distantes ou emagrecer sete quilos até o Réveillon. Outra é que você já entendeu que a cor da roupa da virada - ou o tamanho da festa - não tem poder algum sobre o ano que vai começar. Então, deixe logo de agonia e vamos respirar.

Mais uma verdade: ainda que seja tentador fantasiar que objetos cuidam de vínculos entre humanos, a banda não toca assim. Dias buscando o mimo ideal pelos shoppings não expurgam os pecados de más relações e não-ditos que se arrastaram pelos últimos meses. Nem para adultos nem para crianças e são elas que mais nos convidam a olhar como se descoberta fosse (porque devia ser) o clichê “presença é melhor que presente”. Pelo menos para todas elas, é. Pode perguntar, mas de um jeito que dê pra criança entender. Depois você vê o que faz com a resposta.

(Não tô sugerindo abolir presente de Natal, é só diminuir a pressão e ampliar o sentido.)

(Também não sofrer muito com eventuais frustrações.)

(Não é tão difícil assim.)

(Só na miséria - financeira e/ou emocional - tudo, de fato, é incontornável.)

Outra coisa é que nossos mortos estão tão mortos neste mês quanto em qualquer outro, você também já percebeu, suponho. Olhando direito, algumas saudades são mais juninas ou carnavalescas do que natalinas, até. Outras, mais cotidianas, de hora de almoço ou de nada fazer. Também há as óbvias dominicais e as estranhas, no meio de uma frase com o cara do Uber. Por exemplo. Se fosse com data marcada tudo bem, mas não é. Então, não é justo associar melancolia a esses dias que já são, pela posição no calendário, os mais cansados do ano. Tá fazendo um sol lindo. Convém quarar. Ou “coarar”. Como preferir.

Por outro lado, os vivos também não ficam mais importantes só porque o ano vai acabar. Nem o amor mais amável. Nem por encanto se forma, justo agora, um sólido núcleo familiar. Família confraternizando acho mais minha irmã me ensinando a tirar a febre de Leo com acupuntura. Ou quando minhas amigas dividem os dias na casa de praia delas comigo porque quero namorar escondido. Somos eu e meu amigo virando a noite bebendo sem medo, seguros pra falar e ouvir. Sou eu achando minha amiga calada demais e querendo saber o porquê. Sou eu sendo mãe de meu filho pequeno e minha mãe sendo mãe da adulta (mais ou menos) que sou. Tudo sempre. O ano todinho conjugando “confraternizar”.

(Na sua vida também tem?)

(Se não tiver, vá construindo aos pouquinhos que ainda dá.)

Importantíssimo todos saberem que não precisam perdoar ninguém por esses dias. Eu mesma, por ora, suspendi esse serviço aqui. Tô lembrando é das belezas recíprocas e não dos agravos. Que nada. Ando muito cansada, quase todo mundo está. Querendo perdoar, pode ser em janeiro ou em qualquer outro mês, não faz diferença alguma. Assim como incensar a casa e qualquer outra coisa que se queira por querer, por achar bom. Ritualiza quem gosta. Em nenhum lugar do mundo há estudos provando que tem necessidade ou resultado algum desses rituais.

O que tá bem provado é o tanto de gente que enlouquece nos dezembros. Pode perguntar a qualquer psicólogo, por mais recém-formado. Ou apenas olhe ao redor. Depressões que se complicam, ansiedade generalizada e explícita. Exatamente porque achamos que precisamos todos estar - subitamente e ao mesmo tempo – lindos, generosos, místicos, sociáveis, felizes, com pensamentos elevados, animados, organizados, cheios de vitórias e planos, além de muito bem acompanhados. Principalmente, comprando compulsivamente com o dinheiro que nem sempre se tem, pra começar o ano seguinte perfeitamente endividados.

Acho dezembro bonito, mas quando esvaziado das obrigatoriedades coletivas da época e todo cheio do que faz sentido pra cada um. Que pode até coincidir com o roteiro comum e não tem problema fazer os balanços, defumações, planos e festas. Se for bom. Quando não é, vira essa doença que todo mundo conhece e sobre a qual pouco se fala. Pra mim, há anos, tem sido sem muita cabriola social, sem filas, sem grandes compras, sem felicitações obrigatórias. Sem correria. Sem esforço específico ou maiores sacrifícios. É o mês em que meu filho entra em férias e isso é legal. É quando começam as festas populares que eu amo em Salvador. Também o verão.

É quando nossa família – que já convive o ano inteiro – começa a veranear. Tem até a noite de Natal e o Réveillon. Sempre é bom. Às vezes, tudo muito programado e grandioso. Parecendo de novela mesmo. Outra vez, foi fazendo amigo-secreto, às gargalhadas, com dois amigos e uma preá chamada Miraci. Tem também, eventualmente, apenas indo dormir. Do mesmo jeito que às vezes tem Carnaval e outras não. Ou São João. Ou meu aniversário. Ou qualquer outro “momento especial” que sempre será proposta (e sou animada), mas – há anos - não é mais condenação.

“Que o espírito de Natal não invada a sua alma inteira”, dizia um amigo, há décadas, e é o que desejo a você. O exercício saudável da escolha e a serenidade para, eventualmente, decepcionar pessoas. Normal. Sempre haverá quem considere “estranho”, “amargo” ou “do contra”, quem prefere ir à praia, por exemplo, em vez de passar o dia comprando no Shopping Leblon. Escutei isso, muitos anos atrás, no começo da minha “libertação”, no meio dessa cansativa gente "tradicional". O problema não era meu, já sabia. Então, apenas pedi mais uma caipirinha, tomei um banho naquele chuveiro da areia (que tenho medo de onda grande e água gelada) e pensei: “Tranquilo. Dezembro também vai passar”.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo