Wilma pode não valer nada, mas é viúva de Gal Costa e está sofrendo homofobia

A depender do interesse, até a galera ‘sem preconceitos’ arranja um jeito de botar reticências em certos casais

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 24 de fevereiro de 2024 às 08:00

Wilma e Gal Costa foram casadas por anos
Wilma e Gal Costa  Crédito: Reprodução

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Observo e acho curioso – não engraçado – como mesmo as ‘melhores’ pessoas acham que, a depender da causa, vale qualquer munição. Inclusive a indignidade de negar a existência de um casamento de mais de 20 anos, para que uma mulher (de péssima fama, é verdade) não receba a parte que – a priori - lhe cabe na herança da companheira que faleceu. Claro que estamos falando do reconhecimento de uma relação homoafetiva, essa célula ainda socialmente frágil, também porque na hora do ‘vamos ver’, a depender do interesse, até a galera ‘sem preconceitos’ arranja um jeito de botar reticências em certos casais.

Observe, isso não é uma fofoquinha de artista. Substitua os personagens e você vai ver o mesmíssimo drama pelos quais passam viúvos e viúvas de casais homoafetivos anônimos que, quando precisam exercer direitos, não são reconhecidos como companheiros legítimos pelas famílias dos falecidos. Porque ainda temos ambiente pra isso e é esse ambiente que o apagamento da relação entre Gal Costa e Wilma Petrillo fortalece. É nessa base que bens de pessoas homossexuais voltam para as famílias de origem porque, afinal, eram ‘solteiros’. É nessa toada que companheiros e companheiras de uma vida perdem direitos legítimos. Basta que não esteja tudo escrito e assinado bem direitinho.

(Inclusive, melhor casar. Fica a dica.)

Deus, o mundo, boa parte da Bahia e uma banda do Rio de Janeiro sabem que Gal era companheira de Wilma. Ela pode não valer nada, mas é a viúva da história e está sofrendo homofobia. Não sei se assinaram papel, fizeram alguma cerimônia, se comemoravam bodas nem o que Gal escreveu no tal testamento que dizem existir. Tô ligada que a viúva é acusada dos piores golpes e violências, não apenas contra Gal. Estou convencida de que boa coisa ela não é, principalmente depois de escutar o áudio no qual pressiona Gabriel, o filho da cantora, enquanto ele se nega a assinar um tal documento que trata da divisão da herança.

Nenhum amigo da artista vai com a cara de Wilma. As histórias são pavorosas, Gal murchou durante a relação. Estava, visivelmente, infeliz e adoecida. Há dezenas de testemunhos pesando contra Wilma e isso tudo é gravíssimo. Talvez, a viúva tenha contas a prestar à justiça. Já houve quem pedisse exumação do cadáver de Gal, para investigação cuidadosa da causa mortis. Não discuto, aqui, nenhuma suspeita ou relato e já chamei Wilma de ‘psicopata’ algumas vezes, não apenas dentro da minha cabeça. Mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Questionar a existência dessa relação (sim, acredito que abusiva), é desonesto, além de perigosíssimo.

Por exemplo, foi pedido ao filho de Gal – na época, bem mais jovem – que assinasse um documento reconhecendo que a mãe e Wilma eram um casal. Agora, ao fazer 18 anos, o garoto solicita a nulidade desse mesmo papel no qual legitima o casamento das duas. Ele afirma que sofreu pressão da viúva para a opinião favorável. Não duvido. Mas também fico pensando, daqui, a pressão que pode ser a possibilidade de - tirando Wilma de campo - ser o único herdeiro da mãe.

Também me pergunto que recursos um adolescente tem para ‘legitimar’ um casal de mulheres idosas, em uma realidade como a nossa. Quais seriam os parâmetros de Gabriel? Se a relação ‘de casal’ entre as duas existiu, mas se modificou ao longo do tempo, um adolescente teria condições de dizer exatamente quando e o porquê? Quantos de nós, durante a infância/adolescência, fomos capazes de entender as sutilezas da vida amorosa de adultos? E mais: que filho (adotivo ou biológico) de casal hétero já foi convocado a assinar um documento assim?

Mais ainda: se o vínculo entre ambas passou a ser apenas a submissão de Gal à violência de Wilma, Gabriel saberia dizer desde quando e como isso se deu, ou seja, até quando o casamento ‘valeu’? Que estudo profundo psíquico seria necessário para termos essas respostas que esperamos de um leigo? Última coisa: quando tomamos conhecimento de uma relação heteroafetiva abusiva, o que fazemos é negar a existência da relação ou entender que na relação há problemas? Pense aí, por gentileza.

‘Parece que elas moravam juntas, mas não viviam como um casal’, comentou meu amigo. Mas o que é ‘viver como um casal’ na opinião de cada um de nós? Seria transar a cada três dias? Ter jantares românticos toda terça-feira? Dormir na mesma cama? Beijar de língua toda manhã? Vale selinho ou não? Para ser um casal, precisa ‘parecer’ um casal pra quem? Por que essa dúvida não aparece sequer em relações passageiras entre homem e mulher? Por que a ‘certeza’ da existência de um casal homoafetivo é tanta em outros casos, quando isso é ‘divertido’ como fofoca? Parece que reconhecer relações românticas entre pessoas do mesmo gênero é sempre opcional, não é?

O que seria ‘viver como um casal’ para mulheres, com mais de setenta anos, num país que outro dia se escandalizou com o beijo de duas mulheres maduras na novela? O que seria ‘viver como um casal’ para uma geração que aprendeu a disfarçar sexualidades ‘dissidentes’? Para percebê-las como um casal, você precisa do que mais além do fato de a relação ser comentada – há décadas - como um casamento e nenhuma das duas jamais ter desmentido? O que, além do olhar de todos os amigos e conhecidos? O que mais, além da explícita ocupação de ‘lugar de esposa’ que Wilma performa publicamente, há mais de 20 anos, durante a vida de Gal e depois dela?

A lei deve ter dispositivos para punir a viúva abusiva, pra ressarcir o herdeiro se o patrimônio da mãe foi dilapidado por Wilma. Talvez, as dezenas de depoimentos de amigos da cantora sejam suficientes para que Wilma perca os direitos de viúva. É possível que o testamento de Gal Costa – que parece ter excluido a companheira - seja indiscutível. Ótimo! Talvez a viúva até seja presa, se advogados trabalharem direitinho. Não sei, não tenho conhecimento suficiente pra apontar um caminho jurídico. O que sei é perceber o quanto as pessoas usam ‘a favor’ preconceitos que dizem combater, quando julgam estar diante de uma ‘boa causa’. Eu só acho que assim não vale. Civilidade também é perceber que o coletivo se sobrepõe ao individual. Por mais desafiadora que, às vezes, essa honestidade possa parecer. Sim, Wilma é viúva de Gal, por mais irritante e injusto que isso seja e não há nada que nenhum de nós possa fazer.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo