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Gil Vicente Tavares
Publicado em 16 de outubro de 2023 às 10:04
“Quanto mais a gente ensina, mais aprende o que ensinou”, dizia o professor, e um dos maiores letristas do mundo, Jorge Portugal, em sua parceria com o mestre Roberto Mendes. >
Uma das frases que mais repito em sala de aula é que a profissão de professor é a mais cínica que existe, pois estamos sempre aprendendo muito mais do que ensinando.>
Tornei-me professor efetivo, na dupla acepção do termo, em 2015. Antes, havia ministrado oficinas, havia sido professor substituto por dois anos na UFBA, mas só há 8 anos eu virava professor efetivo da Escola de Teatro da UFBA, depois de passar por mestrado, doutorado, e uma carreira de 16 anos como profissional das artes.>
E não estava pronto.>
Tive e tenho mestres que me confirmam isso, sempre que as/os ouço. Há sempre uma abertura de mundos na minha cabeça, inusitados, luminosos, esquecidos ou desconhecidos.>
Até hoje, quando vou ministrar a mesma disciplina que já ministro há tempos, sinto aquele cagaço, corro atrás de bibliografia nova e fico inseguro achando que sei pouco do assunto. Naturalmente, meus mestres não nasceram prontos, e talvez tenham passado pelo mesmo processo que eu.>
Sempre tive paixão pelos mais velhos. Meu pai relatava que eu ia engatinhando para o escritório dele, onde ele trabalhava. Não lembro. Mas lembro de ser paparicado por uma tia minha, quando ia visitá-la, e eu dar pouca atenção aos mimos para ir ao escritório de meu tio, escritor.>
Eu ficava lá vendo ele escrever, aquele cheiro de livros, aquele barulho da máquina, os cartazes dos filmes dos quais ele foi roteirista, e o mapa do Brasil feito por Henfil, com nossa mata sendo cortada, o ouro roubado e o céu poluído. Ficava lá, sentadinho, até ele me dar atenção e me presentear com um papo, um livro ou vinil.>
Quando veraneava em Morro de São Paulo, onde nasceu minha avó materna e parte desse ramo da família (e sofria bullying no colégio porque não ia para lugares chiques como Itaparica), eu preferia papear com meu tio Cyro, andando pela praia, a brincar com meus primos.>
Essa minha busca por conhecimento dos mais velhos nada tinha ou tem de especial. Pelo contrário, era e é ainda a sensação de fragilidade intelectual. Como Goethe, em suas últimas palavras, a busca por “luz, mais luz”.>
Recentemente, soube que a palavra aluno tem sido condenada, por significar sem luz. Apesar de eu ainda me considerar um fifó, e não me incomodar com essa folclórica versão, essa condenação demonstra os tempos sombrios atuais, pois mais uma verdade mentirosa é usada pelos que reclamam ter uma palavra que os diminui. Ironicamente, se diminuindo ainda mais em sua ignorância. Está lá no dicionário Huoaiss: “lat. alumnus, i no sentido de ‘criança de peito, lactente, menino, aluno, discípulo’, der. do v. alĕre no sentido de fazer aumentar, crescer, desenvolver, nutrir, alimentar, criar, sustentar, produzir, fortalecer etc.”>
Eu sigo oportunista, ainda, me considerando mais um discípulo que ensina, e buscando aprender com estudantes, com mestres, e não vai aqui nenhuma falsa modéstia. Pelo contrário, numa terra onde se paga 50 pra você não ganhar 20, se a gente não se valorizar, facilmente se é oprimido pela mesquinhez da província.>
Aliás, o ato de ensinar, hoje, é, antes de uma troca de conhecimento, um ato de desfazer preconceitos, lugares comuns equivocados, e leituras deturpadas dos temas ou assuntos. O imediatismo das redes, e a ansiedade por se trazer verdades e se defender bandeiras e ideologias, tem gerado um outro trabalho que é o de desmontar as bombas do equívoco instaladas por terroristas da ignorância e do ódio.>
Há uma parábola oriental, que conto aqui de memória, cheia de falhas, mas conservando a essência. >
Um samurai chegou para seu mestre e perguntou qual a diferença entre o inferno e o céu. O mestre prontamente começou a humilhar o samurai, ofendendo-o, dizendo que ele não merecia saber tal coisa. A raiva do samurai foi tanta que ele não aguentou e puxou a espada, partindo para cima do mestre, que o interrompeu com a frase: “isso é o inferno”. O samurai, perplexo, vendo-se numa posição de descontrole, de violência e brios machucados, parou e guardou sua espada, ao que o mestre respondeu: “isso é o céu”.>
Estamos num momento onde de todo lado o professor vem sendo posto contra a parede, e seus conhecimentos considerados inúteis, ultrapassados, e/ou ideológicos, e/ou tendenciosos, e existe até mesmo a busca de uma escola sem partido, onde a ideia é, na real, negar toda uma historiografia, sociologia e antropologia, para se ensinar uma visão de extrema direita.>
As gerações instagrâmicas chegam em sala de aula cada vez mais preocupadas com sua selfie, estão sempre a olhar para si mesmas e suas curtidas e comentários de um minúsculo mundo de importância e poder. Seguem com suas cartilhas a tira-colo, donas de certos clichês e “verdades”, prontas a combater quem conspurca e deturpa o ensino. Ninguém mais que a professora ou o professor.>
É verdade que tenho tido, ao contrário, experiências na graduação que têm me dado enorme satisfação. Estudantes que aceitam o desafio de descobrirmos juntos um mundo vasto e inesgotável de conhecimento. E volto dessas aulas de alma lavada. Sigo sendo o pessimista mais otimista que existe.>
Calhou de eu escrever este artigo no dia do professor, 15 de outubro. E de eu seguir em conflito com minha carreira acadêmica, abarrotando meu escritório de livros e me entupindo de incertezas.>
Mas sigo aprendendo o que ensinei, e agradecendo a mestras e mestres que, ainda hoje, acendem uma fogueira no quartinho escuro onde meu fifó tremulamente ilumina alguma porta ou janela.>
E onde sequer vê-se alguma espada, mesmo que embainhada. >
E onde o céu só existe e é visto porque alguém apontou ele para mim.>