A distinção nas artes: do conceito ao preconceito

A arte pode ser genial ou medíocre. Manifestações tradicionais, também. O que penso importar disso tudo é a qualidade individual da obra e do acontecimento. Sem precisar, com isso, forçar a barra com rótulos equivocados

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  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 30 de maio de 2024 às 21:04

Outro dia, estava conversando com uma amiga sobre cartuns e charges. Descobria, ali, a diferença de um para a outra, e que eu sempre havia chamado os cartuns de Laerte de maneira equivocada.

Na sequência da conversa, minha amiga disse que a obra da genial cartunista, que eu sempre chamei erroneamente de charge, atualmente era poesia. Em seguida, me enviou alguns cartuns dela para comprovar sua ideia.

Eram cartuns. Bem melhores que a maioria da poesia que vem sendo escrita por aí. Mas eram cartuns. A partir dali, a conversa desandou, e provocou em mim uma avalanche de questões que foram ao encontro de comentários atuais, que muito têm me incomodado, sobre arte e cultura.

Antes de tudo, dizer que os cartuns de Laerte, por serem tão filosóficos, existenciais, profundos, líricos, tinham deixado de ser cartum para virar poesia, me soa como uma desqualificação dessa arte de gênios como Ziraldo, Quino, Henfil e tantos mais. Primeiro, porque tira dela a possibilidade de ser lírica, profunda, existencial e filosófica. Parece que o excesso de genialidade promove a arte a uma qualidade superior: vira poesia. E, segundo, que, com isso, acaba por fazer um nivelamento em que cabe a uma determinada criação as características mais porretas e bacanas no universo criativo.

Prontamente, me vêm as letras de Chico Buarque. Como ele mesmo defende sempre, são letras de música, e não poesia. Podem ser muito melhores que milhões de poesias mundo afora, mas são letras melhores que poemas, e não letras promovidas a poesia de tão incríveis que são, aumentando sua cotação na bolsa de valores da tolice humana.

Basta pensarmos uma inversão dos dois casos. Imagine alguém dizer que uma poesia é tão visualmente incrível que já nem é mais poesia, e sim um cartum, ou dizer que um poema é tão musical que não pode mais ser chamado de poema, mas sim de letra de música. A forma como isso denotaria um rebaixamento da poesia mostra um natural preconceito e juízo de valor entre as formas de criação.

Eu lembro que eu adolescente, quando ouvia a canção Água de meninos, de Gilberto Gil e Capinan, dizia a bobagem de que aquela música nem era mais popular, era praticamente uma suíte clássica, pelas suas qualidades e particularidades. Com isso, eu tirava da música popular a possibilidade de ser complexa e sofisticada, e tentava dar um status “superior” à canção de Gil e Capinan.

É curioso perceber como a seguida luta em tirar o ranço aristocrático e “erudito” de determinadas artes, fazê-las descer do salto, que muita gente parece defender, acaba esbarrando nas necessidades de se exaltar determinada obra, ou determinado acontecimento, como se sua qualidade, complexidade e profundidade merecessem um status de arte “superior”, calçando um salto que não lhe cabe e nem deveria existir.

É engraçado ver gente cheia de discurso bonito sobre ser contra colocar as coisas em caixinhas, numa contemporaneidade de fronteiras borradas, mas que se agarra a rótulos para legitimar determinadas artes e manifestações que parecem não caber em sua dimensão.

Fico a imaginar alguém assistindo ao Nego fugido, manifestação cultural incrível que acontece em Acupe, distrito de Santo Amaro, e querendo dizer que aquilo é tão sofisticado, complexo, profundo, que na verdade é teatro.

Por que uma manifestação cultural, popular, de uma cidade do interior, não pode ser profunda, complexa e sofisticada, que já querem que ela mude de status, dando-lhe uma pretensa promoção a ser uma “arte superior”? Por que ela não pode ser incrível como manifestação cultural popular?

Será que nossas manifestações tradicionais são inferiores ao acontecimento teatral?

A questão do teatro, inclusive, surge de maneira bastante curiosa.

O teatro tem sofrido ataques aos seus valores, recentemente. Há, a todo momento, tentativas de se deslegitimar, desvalorizar e desdenhar das tradições, técnicas e sistemas do teatro. Rapidamente, o que carece de sofisticação, profundidade e complexidade protege-se sob o discurso frágil de um diálogo com linguagens mais contemporâneas, diversas e experimentais. De repente, uma dramaturgia fraca, um ator que não sabe dizer um texto, ou uma peça totalmente desestruturada em termos de direção e visualidade viram novas maneiras de se fazer teatro.

Não bastassem as artimanhas para se desculpar equívocos e fragilidades, os ataques a uma sólida formação e a um dedicado estudo surgem até mesmo dentro das próprias universidades e cursos técnicos. Parece haver um prazer em se dar um tiro no próprio pé.

O curioso é que muitos vêm desqualificando o teatro em sua essência, mas ao mesmo tempo há uma ânsia por se chamar um monte de coisa de teatro para legitimá-las.

Gera-se aí uma mão dupla de desastres. De um lado, acaba-se por fazer soar como inúteis as escolas, cursos e conservatórios de teatro, visto que todo o aprendizado que poderia vir destes torna-se desnecessário na contemporaneidade do tudo vale. Do outro lado, curiosamente, cada vez mais há a necessidade de se rotular de teatro, para dar um status diferenciado, tudo que possa interessar que assim seja visto. O teatro é ruim, ultrapassado, careta, sendo teatro, mas tudo que é oportunamente interessante, não sendo teatro, vira teatro por ser oportunamente interessante.

A arte pode ser genial ou medíocre. Manifestações tradicionais, também. O que penso importar disso tudo é a qualidade individual da obra e do acontecimento.

Sem precisar, com isso, forçar a barra com rótulos equivocados.

Porque, afinal, essa necessidade de se fazer distinções e diferenciar qualitativamente gêneros, culturas, criações, artes, gentes e cores me parece muito menos um conceito do que, na verdade, um grande preconceito com as diversidades de linguagens e fazeres da gente.