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Literatura, cegueira e revolução

Dois narradores disputam a história. Adonias e Valentim. O primeiro, imparcial, apenas narra os fatos, os detalhes. O segundo, quase um conspirador contra a coroa portuguesa, decreta: “uma cidade com escravos é sempre triste”.

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 18 de agosto de 2025 às 05:00

Um cego, cujo cotidiano no Largo da Palma é viver entre ratos e dejetos, pedindo esmolas, é acordado na madrugada pelo vigia manco das redondezas: “hoje é o dia”. O ceguinho, que nada vê e nada sabe, é surpreendido pela informação de ser, aquele dia, o dia dos enforcados. Que enforcados? O que fizeram? Por que a forca?

Sem respostas, caminha estranhando o ar diferente da cidade, os vazios e silêncios que parecem mobilizar as pessoas a outro sentimento, a outro lugar. E é na venda de Valentim que ele finalmente consegue saber o que está acontecendo.

A partir de então, a cegueira do personagem sem nome é iluminada pelas palavras do dono da venda. Valentim conta dos revoltosos, que tentaram lutar pela independência, pela liberdade, contra a opressão, a escravidão, a exploração. Por pouco, Valentim não estaria entre os enforcados. Uma remessa de cachaça no porto o salvou de uma fatídica reunião.

Enquanto Adonias Filho, em seu conto Os Enforcados, do livro O Largo da Palma, nos faz percorrer Salvador, sua atmosfera sombria em dia de sol, suas ruas diferentes e seus povos distintos, Valentim vai narrando para o ceguinho da Palma os detalhes do caminho.

Dois narradores disputam a história. Adonias e Valentim. O primeiro, imparcial, apenas narra os fatos, os detalhes. O segundo, quase um conspirador contra a coroa portuguesa, decreta: “uma cidade com escravos é sempre triste”.

No entanto, é o autor do conto que nos faz ver, aparentemente sem denunciar, que são diversas as escravidões. Não só a mais evidente, cruel, dos negros humilhados pelas ruas, mas a escravidão dos povos quanto ao domínio imperial e à violência institucional de um enforcamento, a escravidão do olhar do ceguinho da Palma, que necessita de Valentim para imaginar toda a cena que se segue.

Não é preciso muito. Aliás, não é preciso mais nada além de dois personagens socialmente marginalizados, desprezíveis, um mestiço qualquer dono de uma venda, e um cego pedinte miserável, para termos acesso aos palácios, masmorras, opressões e injustiças dos poderosos e opressores.

Adonias não precisou fazer uma lista. Não inchou sua narrativa com mazelas das populações carentes, e nem tampouco precisou apresentar vilões. Livrou-nos do maldito maniqueísmo que empobrece a narrativa, estabelecendo oprimidos e opressores. Poupou-nos de denúncias, números e dados provando o mal. O que, invariavelmente, acabaria por induzir o leitor, de maneira didaticamente pobre, a um pretenso posicionamento político que impossibilita qualquer livre e complexa imersão nos caminhos da contação e das palavras. Alteração de curso em que se sai da ficção para a correção, doutrinação e catequização. Quando não, simplesmente, para o confortável lugar de se dizer o que todos já sabem, e querem ouvir, numa celebração fútil de uma politização rasteira e improdutiva. Não me parece ser este muito o reino da arte, literatura e poesia que interessa a Adonias adentrar.

O conto vai criando em mim, seja via Adonias, Valentim, ou pelas sensações cinestésicas e sensitivas do ceguinho da Palma, o necessário para que entendamos a situação maior de opressão e injustiça, mas, aquém de tudo, a mera história de um mendigo cego e um dono de venda, que cruzam a história do Brasil, e seguem por aí até hoje cruzando a história a esmo, invisibilizados pelo que se repete e não se conserta dos males do mundo.

É um conto, portanto, sobre os que não são vistos, e os que não veem. Em diversos graus, também sobre o sofrimento e penalização daqueles que querem buscar sair da sombras.

Mas o cego segue, nas trevas do dia ensolarado, ouvindo de Valentim a via crucis de cada um dos quatro revolucionários baianos.

Tudo é rápido. Sabe-se lá como e com qual maestria, Adonias consegue nos provocar um imenso silêncio que abafa, na Praça da Piedade, qualquer revolta, suspiro ou dor. Em curtíssimas sentenças, as sentenças são dadas. Um por um, vão morrendo os revoltosos mestiços populares; soldados e alfaiates. Valentim apenas anuncia que subiram e morreram.

Na morte do quarto e último, ele decreta o fim: “três horas da tarde e João acaba de morrer”. É também a derrota, a pá de cal na ilusão do dono da venda. “E foi tudo o que conseguiu dizer”, conclui o narrador da história.

Valentim some na multidão, sem se despedir. Talvez, mesmo, o ceguinho da Palma não precisasse do auxílio de ninguém, pois ele volta sozinho para o Largo da Palma, “sempre a pensar nos enforcados”. Pensa então “que naquele momento já cortavam as cabeças e mãos dos enforcados”.

Em pouquíssimas páginas, Adonias Filho fala da Conjuração Baiana, a Revolta dos Alfaiates, e dá um panorama de toda opressão, injustiça, nos fazendo entender qual lado foi o escroto, qual foi o que buscava a liberdade, a igualdade e fraternidade. Ele não levanta bandeiras, nem atira panfletos. E não há a necessidade de caracterizar vilões, opressores, ditadores e escravocratas para que entendamos o mal.

E por quê? Por que o autor está a nos contar tudo isso sob o ponto de vista de um cego. Sim, o oxímoro se torna genial. Ao fim do conto, o ceguinho se ajoelha, põe as mãos na porta da igreja, e, única vez em toda a vida, agradece à Santa da Palma por ser cego.

A beleza e força desse final são uma pérola da nossa literatura. Ao fim da história, nos faz ver o dia em que pobres mestiços baianos, em busca dos ideais da Revolução Francesa, são enforcados pela monarquia, em meio a uma população de escravizados, de gente pobre, humilde e oprimida.

“Triste foi o dia em Salvador da Bahia”, começa o conto. Depois, tudo volta ao normal. Mas a frase de Valentim, “uma cidade com escravos é sempre triste”, parece seguir ecoando. O ceguinho da Palma, depois de por apenas um dia agradecer sua cegueira, volta ao seu cotidiano sem enxergar a tristeza à qual se acostumou.

Triste porque os enforcados jamais deixarão de fazer parte da sua imaginação. Não pelo que ele poderia ter visto, mas pelo que ele pôde sentir a partir do que foi narrado.

Como nós, leitores.

A narrativa nos faz compreender que menos é mais, e que as palavras escondem outras dimensões do real, que precisam ser acessadas pela imaginação, e não por dados e discursos concretos. Sem precisar apontar vítimas e algozes, sem precisar atirar panfletos e levantar bandeiras. E assim, sem dizer nada, nos fazendo navegar por caminhos vãos, a narração nos deixa sentir tudo.

E ver além do óbvio, além do que a vista alcança.