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O clube dos States, e o Brasil lá na esquina

Gosto de usar as listas muitas vezes como termômetros, como sintomas, evidências do que se pode considerar os lugares comuns, as modas e tendências

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 11 de junho de 2024 às 23:24

Eu adoro listas.

Fico sempre pesquisando na internet os cem melhores filmes segundo tal jornal, ou segundo tais cineastas, os melhores livros de ficção segundo uma lista (ói ela!) de críticos, ou de vencedores de tal prêmio, e por aí vai.

Na pandemia, por exemplo, peguei os livros citados na Biblioteca pessoal e no livro Prólogo dos prólogos, de Jorge Luis Borges, e fiz, a partir do que comentava o escritor argentino, uma lista minha para ler durante o isolamento que passamos. Naturalmente, fui filtrando e me desviando de determinadas obras, por já perceber o porquê delas estarem ali. E assim, consegui ler coisas incríveis.

Filtros e desvios. Não encaro as listas como donas da verdade, sejam por quem sejam feitas, sejam até mesmo próximas do que poderia me parecer algo coerente. Gosto de usar as listas muitas vezes como termômetros, como sintomas, evidências do que se pode considerar os lugares comuns, as modas e tendências. Até mesmo perceber a falta de conhecimento de uns e outros que parecem carregar profundo conhecimento sobre uma arte, assunto, estilo, e em suas listas deixam evidentes a fragilidade e ignorância dos mesmos.

Existem filmes, livros, quadros, autores eleitos como os melhores, e que muitas vezes me parece que entram em listas porque, no fundo, não se pode ignorar certos cânones, mesmo que equivocados. Lembro sempre daquela frase que diz que o resultado de uma premiação diz muito mais sobre a comissão do que sobre os premiados. As listas também são reflexos do seu tempo, e muitas vezes das crises do seu tempo.

O bom das listas, vez por outra, é justamente olhar os desconhecidos, pouco falados, ou gente de países marginais aos grandes centros artísticos e culturais que se tem por referência no mundo. Ao menos servem para conhecermos húngaros, peruanos, romenos, nigerianos, e por aí vai.

Se nos dez mais de uma lista de língua inglesa, por exemplo, encontramos um latino americano, só há três alternativas. Ou entrou para poder constar e mostrar um olhar oportunista sobre a diversidade. Ou é uma obra exótica, que está ali transitando entre o primitivo, o naive e o folclórico. Ou é uma grande obra que, para usar um termo da moda, se torna incontornável.

A revista Paste Magazine, dos EUA, acabou de eleger os trezentos grandes álbuns de todos os tempos. E colocou o incontornável disco Clube da esquina em nono lugar, entre os dez primeiros colocados.

O álbum, capitaneado por Milton Nascimento e Lô Borges, figura ao lado de Kate Bush, Fishmans e OutKast. Sabem quem são? Porque eu, não. E isso não é problema meu e nem da revista, diga-se de passagem. A questão não passa por aí.

Primeira curiosidade disso tudo é que nunca, jamais, em hipótese alguma, eu tinha ouvido falar dessa revista. Nunca vi nenhum amigo músico, dos mais famosos aos mais alternativos, comentar ou compartilhar algo dessa revista. E de repente, ela estampa o noticiário local com uma relevância meteórica. Ou vira lata, não sei.

O famoso complexo que Nelson Rodrigues tanto atacava, em nós, brasileiros, parece não querer nos fugir das mãos.

Vocês imaginam uma revista do Brasil ser notícia na imprensa dos EUA porque colocou o disco da banda Wilco numa lista de melhores discos dela? Citei Wilco porque está ali, é vigésimo lugar na lista da Paste Maganize, e eu também nunca tinha ouvido falar.

Eles cagam para o Brasil na exata medida em que abanamos o rabo aos estadunidenses diante de qualquer valorização de nossa arte e cultura.

É evidente que os EUA foram um país que soube trabalhar técnica, mercado e qualidade de uma maneira inigualável. Não podemos tirar deles seu valor incomensurável no que tange à relação entre arte e produto, lucro e sucesso. E, sim, é bom ser lembrado por eles, pensando também em mercado e visibilidade.

Mas me parece que a revista se sentiu na obrigação de colocar algum álbum de música popular brasileira junto a (confesso que estranhei) uma banda japonesa, figurando entre ingleses e estadunidenses, na lista dos dez mais.

Dentre os trezentos discos, só mais um brasileiro, o Acabou chorare, quinquagésimo primeiro da lista. E acabou. Chorar? Como esses dois, há mais uns cinquenta, cem, trezentos discos incontornáveis no Brasil.

A lista da revista começa com Stevie Wonder. Figura seminal da música pop. Indiscutível. E não interessa aqui meu gosto (achei o disco chatíssimo, o tal do Songs in the Key of Life, de 1976). Mas o segundo disco da lista é Disintegration (1989), da banda The Cure.

Sim. Num universo musical de nomes como Pink Floyd, Elton John, Queen, Hendrix, o segundo melhor álbum de todos os tempos é do The Cure. E só um disco dos Beatles encontra-se entre os dez mais da revista, em quinto, atrás também de Kate Bush. Depois, volta só em vigésimo sexto, com outro álbum.

Eu não tenho o direito, nem o cacife ou conhecimento, e nem tampouco as lentes necessárias para dialogar com as escolhas da ilustre desconhecida revista, e criticá-las.

Mas uma lista que ignora Pablo Milanés, Piazzolla, Salif Keïta, Edith Piaf, Cesária Évora, Dulce Pontes, Ute Lemper e tantos outros não anglófonos, para além de brasileiros como João Gilberto, Caymmi, Jobim, Chico, Gil, Caetano, João Bosco, Gal, Elis, Bethânia, Luiz Gonzaga, e tantos outros, é uma revista que transita por outros gostos, critérios e estéticas.

Não é que eu ache que não se deve noticiar, e nem até comemorar termos um de nossos grandes discos numa lista, qualquer que seja, e de qualquer país que seja.

Mas percebo o quanto os EUA são fechados a outros lugares, pondo-se como referencial da criação artística mundial. E o quanto nós vamos comprando essa lavagem cerebral e ignorando a dimensão das belezas que existem mundo afora.

É recorrente vermos listas de filmes, discos e livros onde a preponderância da língua inglesa impera (com direito a duplo sentido). Desde a Segunda Guerra que os EUA descobriram outra maneira de imperialismo, o cultural, e conseguiram dominar as referências, os mercados, as estantes e as prateleiras. E até mesmo as opiniões. De maneira por vezes sutil, eles vão ditando qual estética é a melhor, e passamos a ver as artes sob a lente de um país que sequer investe em ampliar sua visão; e, no fundo, quer vender o que produz sob o invólucro de que é o melhor, a partir de padrões que eles próprios inventaram ser as referências e parâmetros.

Nós seguimos consumindo esse mercado, e até mesmo obnubilados por uma falsa ideia de que o domínio o é pela qualidade intrínseca das obras produzidas por lá. Aceitamos o que eles dizem ser o melhor tranquilamente. Fosse uma lista francesa com predominância gritante de discos francófonos, e nós estaríamos criticando a França. Mas aceitamos leniente e subalternamente o domínio de obras em inglês.

Como nessa lista de trezentos álbuns abarrotada de discos de língua inglesa.

E se não tomarmos cuidado, seguiremos reiteradamente aceitando ser dominados por uma cultura que, a despeito de suas qualidades, põe apenas dois discos brasileiros numa lista de trezentos, fazendo com que ilusoriamente pensemos que estamos no jogo, sendo respeitados e lembrados pelo país onde tudo que eles fazem é vendido como melhor.

Até mesmo uma lista de uma revista desconhecida e irrelevante para nós, que de repente ficou em evidência e passou a ter valor como referência musical no Brasil.