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Teatro, manifestações e mentira

  • D
  • Da Redação

Publicado em 21 de novembro de 2022 às 05:02

. Crédito: .

O Teatro é uma arte fascinante. Algumas pessoas se juntam, por algumas dezenas de minutos, para um evento. 

De um lado, gente que finge ser outra gente, e conta uma história que, por mais que se baseie em fatos, não deixa de ser uma ficção, também. Seja encenando a vida de um personagem histórico, seja inventando a vida de um personagem imaginário, o que se representa não deixa de ser ilusão, fantasia.

Do outro lado, gente que sabe que aquilo é ilusão, mas aceita por algum tempo, até paga para viver essa ilusão por uma, duas horas, e se condiciona a acreditar, durante esse tempo, que é tudo verdade. Só assim, mergulha-se na fantasia, num acordo poético entre as partes. E ele se dá através do conflito interno entre ações e personagens, para justamente gerar um atrito que leve a uma faísca, uma centelha de pensamento e crítica. Assim é feita a viagem. É um descanso, mesmo que ativo, provocativo, da realidade. Eis o teatro.

Ao fim, atrizes e atores voltam a ser quem eram. Quem assistiu, volta à realidade, também. Mas todo mundo sai modificado, de alguma forma, pela experiência. Uma boa peça, assistida por um público interessado e comprometido com o acordo ilusório, é uma forma de nos deslocarmos da realidade para voltar a ela modificados, alterados por um breve espaço de tempo onde ideias, ilusões, fantasias provocaram, em quem assistiu (e em quem fez, também), uma consciência crítica diferenciada.

Por isso, cada vez mais se exalta o poder das artes como transformadoras, gerando uma visão do mundo mais ampliada, diversa, inusitada, incômoda, provocadora e provocante. Inclusive, o poder da Arte está, tanto pra quem faz como pra quem usufrui, neste jogo de entrar na ilusão e sair dela. Muitas vezes, faz-se isso até mesmo durante a apresentação, provocando um estado crítico em quem cria e em quem assiste. O mesmo serve, guardada as devidas proporções, quanto a outras artes e literaturas.

O Brasil perdeu seu Ministério da Cultura, responsável por cuidar das Artes, no país. Artes que foram massacradas, nos últimos anos, postas de escanteio, criminalizadas, até, num país em que mais de 90% das cidades não têm teatros, bibliotecas e cinemas. E não é à toa que as Artes são marginalizadas; um povo com consciência crítica é um povo emancipado, que entende melhor seus direitos, seus deveres, sua história, sua classe, bem como entende o outro em sua diferença. Não à toa, resolveram atacar Paulo Freire, também, mas essa é uma outra história que não cabe nos caracteres daqui.

As manifestações golpistas atuais têm sido motivo de chacota nas redes. O ativista do whatsapp, que durante anos acreditou nas mentiras mais absurdas e sem cabimento, tomou a rua e passou a agir fora da realidade de forma mais exposta e ridícula. As cenas de comemoração por conta de mentiras recebidas pelo whatsapp, os gritos desesperados por ajuda das forças armadas, orações exasperadas e marchas civis revelam uma massa que se deixou levar por uma ilusão e que assumiu para si um personagem. 

São pessoas que obstruíram seu cérebro para a realidade, deixando de lado história, ciência, números, tecnologias, para acreditar em mensagens toscas e mentirosas, e se tornarem toscas e mentirosas, também.

É muito triste. A falta de consciência crítica, a ânsia pelo obscuro mostram muito bem o quanto as massas, ao se comporem como tal, ficam totalmente propensas a raciocinar menos e odiar mais. E, ao contrário do teatro, não buscam no conflito interno um engrandecimento. Pelo contrário, gera-se uma massa uniforme e amorfa, sem visão crítica e sem conflito com sua fantasia, pronta a conflitar o real. As massas naturalmente cegam-se e se reduzem intelectualmente, perdendo senso crítico, civilidade, noção da realidade e bom-senso. Deixam-se levar por ideias totalmente sem pé nem cabeça, e emulam personagens que parecem saídos de algum clichê de sanatório psiquiátrico.

Parte do país mergulhou numa grande encenação onde a fantasia tomou o lugar da realidade, o absurdo assumiu o posto da lógica e do bom-senso, e o mais desesperador é pensar que essas pessoas dificilmente voltarão de sua ficção. Seguirão num Brasil paralelo, alheios aos fatos, às provas, às leis, às lições da história. 

A experiência da Arte, deslocando-nos da realidade, é evidência da nossa evolução como animais racionais; jogar com a fantasia, com o lúdico, com a imaginação; com uma visão crítica e distanciada do mundo. O processo de alienação do conhecimento, de fuga em massa do real para um imaginário tosco e absurdo, acreditando viver nele a realidade, é o contrário; nosso fracasso enquanto espécie. Voltamos ao ser primitivo; à horda primeva, como nos diz Freud, em seu estudo Psicologia das massas, de 1921, no qual me baseei ao escrever o presente artigo.

São muitas as obras de ficção onde um personagem inventa para si uma fantasia para fugir da realidade. 

A vida imitou a arte da pior forma possível.