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Gil Vicente Tavares
Publicado em 2 de dezembro de 2025 às 16:39
[Zamiátin conta em suas memórias: “Somos todos culpados... Lembro-me de que não resisti e telefonei a Górki: ‘Blok está morto, jamais seremos perdoados por isso”’. Também V. Chklóvski, em suas memórias de Khlébnikov, disse: “Desculpe-nos por nós mesmos e pelos outros, que um dia ainda iremos matar…”] >
Esse trecho acima é de um pequeno livro, A geração que esbanjou seus poetas, de Roman Jakobson. Escrito em 1931, um ano após o suicídio do incrível poeta Vladimir Maiakóvski, cuja morte, dizia Jakobson, era “o rosto do nosso tempo, uma sufocação da história”. Lá dele, né? Ou não?>
É curioso perceber o quanto escritores se sentiram culpados pelas seguidas tragédias:>
[O fuzilamento de Gumiliov (1886-1921); a longa agonia espiritual e as insuportáveis torturas físicas que levaram Blok (1880-1921) à morte; as privações cruéis e a morte desumana de Khlébnikov (1885-1922); os suicídios anunciados de Iessiênin (1895-1925) e Maiakóvski (1893-1930).]>
Sabe qual foi o aprendizado? Parece que nenhum. Escritores seguiram se reunindo e censurando, controlando e atacando quem se desviava das diretrizes do partido comunista. Basta pesquisar desde a Proletkult, passando pela Associação Russa de Escritores Proletários e chegando à União de Escritores Soviéticos, fundada 4 anos após o suicídio de Maiakóvski.>
Eram outros tempos, claro, e na época havia o real risco de alguns dos escritores serem os próximos da lista de fuzilamentos, torturas ou pressões extremas. Mas não foi a primeira, e nem será a última vez em que escritores, artistas, agentes culturais são protagonistas da tragédia de sua própria classe; a despeito das estruturas opressivas de poder.>
Acabou de ser lançado o novo ciclo da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB). Dei uma passada de olho e pouco do que se criticou foi mudado. Mas houve alguns pequenos avanços e ajustes. E mais uma vez muitas pedras serão direcionadas aos editais, critérios, burocracias, e outras tantas guardadas para serem atiradas quando dos resultados da seleção (como sempre acontece por ocasião de prêmios, editais, festivais e seleções públicas). >
É recorrente e comum que as insatisfações sejam personalizadas em instituições, gestores, até mesmo em nomes fantasia. Não é raro ouvirmos que tal prêmio nunca vai indicar a pessoa, que tal edital de tal instância pública não gosta do trabalho de tal grupo, e que enquanto fulana ou beltrano estiver à frente de tal gestão, que o sujeito jamais será aprovado num processo seletivo.>
Onde há fumaça, há fogo. Não vou aqui dizer que as pessoas estão de todo erradas quando se referem a gestores, a gestões e a instituições. Mas em tempos de democracia, transparências, diversidades e autonomias sendo cada vez mais defendidas, há uma figura, entre os editais, prêmios, concursos, e afins, e os concorrentes, que me interessa falar: a comissão.>
Sabemos que, a depender do regime, há um escancarado dirigismo, como no caso soviético, inclusive um dirigismo ameaçador, porque para o algoz virar vítima era questão de dias, a depender de sua posição, opinião e ações. Mas também sabemos que em ambientes onde pretensamente as comissões são soberanas e livres para escolher indicados, selecionados, aprovados e premiados, a decisão está nas mãos dos membros da mesma.>
E é aí que entram artistas para protagonizar escolhas, definições, seleções e premiações.>
É muito comum, entre nossos pares, discussões sobre os problemas estéticos que nosso ofício vem sofrendo. Roda, roda, roda, e as conversas sempre caem na injustiça de tal edital, no equívoco de tal premiação, e em seguida desfilamos críticas à qualidade do que vem sendo apresentado, do quanto não se preza mais a técnica, o aprofundamento da pesquisa na criação da obra, a falta de referências, de esmero artístico. De todo lado, vem gente conversar sobre a crise das artes e, tcharan, tudo isso evidenciado em quem ganha tal edital, quem fica de fora de tal seleção pública ou curadoria de festival, ou quem não foi indicado, ou foi equivocadamente premiado em tal troféu.>
Mas quem compõe as comissões e bancas?>
Eu arriscaria dizer que de 80% a 100% das bancas são compostas por artistas. E isso significa o que, na prática? Que nós, artistas, temos, seguidamente, a chance de definir esteticamente, tecnicamente, qualitativamente, profissionalmente, parte considerável, relevante, primordial dos rumos da arte em nossa cidade, estado e país.>
O silogismo é simples. Se os artistas reclamam dos rumos das artes, e os artistas compõem as comissões e bancas que definem os rumos das artes, então os artistas são (também) responsáveis pelos rumos das artes e reclamam (também) de si.>
Faltam políticas estruturantes para as artes? Sim, e elas inexistem em todas as instâncias. Ainda é, hoje, e sempre, uma mistura de distribuição de renda e assistencialismo, em que os números festejados são dos milhões investidos e da diversidade contemplada, sem preocupação com qualidade e desdobramentos que valham os milhões investidos. Não há nenhuma perspectiva em se trabalhar com indicadores, se estabelecer prioridades e se traçar planos e metas para as linguagens artísticas, diagnosticando ausências, falhas, distorções e carências. Não se apresenta um projeto estruturante para o setor das artes em que se tenha uma perspectiva de organizar e fortalecer o mesmo.>
Mas há um outro lado. Há um orçamento, que, mesmo não sendo o suficiente, dá para se investir em excelentes projetos, artistas, obras, coletivos. Há premiações, seleções públicas, curadorias, em que o que se seleciona vira exemplo, referência, vitrine. E não só algo endógeno.>
Quando o público passa a consumir arte de qualidade seguidamente, quando há uma democratização de grandes obras, trabalhos, e mais e mais classes sociais e bairros, cidades, conseguem acessar isso tudo, os governos cumprem seu papel previsto na constituição, e as mudanças, com certeza, começam a aparecer. O público aumenta. A iniciativa privada passa a olhar com melhores olhos. Bilheterias esgotam. A cadeia produtiva gira, e a perspectiva de uma arte profissional e cada vez mais consistente é consequência inevitável.>
Será que gestores, governos, instituições querem essa microrrevolução?>
Bem, parece que muitas vezes os próprios artistas não querem. >
Podemos listar aqui diversas palavras que passam pela cabeça de nós mesmos, quando vemos uma comissão, banca, curadoria errando feio. Despeito, ressentimento, inveja, amiguismo, modismo, assistencialismo, comiseração, vingança, incompetência, burrice, ignorância, tráfico de influência… Eu poderia dedicar uma crônica toda aos adjetivos que circulam entre artistas sobre os artistas que compõem bancas, comissões, curadorias.>
Mas não me interessa aqui atacar artistas.>
Até porque seria revidar na mesma moeda, ao ver que nós, artistas, seguidamente parecemos atacar a arte quando compomos comissões, curadorias e bancas. Temos, em nossas mãos, a chance de direcionar os rumos do nosso teatro, mas parece que questões como qualidade, merecimento e técnica são os últimos e/ou negligenciados critérios a se adotar numa seleção.>
Interessa-me, sim, provocar, frente à crise das artes que nós artistas, mesmos, reclamamos estar acontecendo, um questionamento sobre os rumos da nossa profissão:>
Tem culpa o artista?>