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Da Redação
Publicado em 18 de dezembro de 2012 às 05:35
- Atualizado há 3 anos
Pode haver um Deus nos vigiando. É o que aumenta os meus tormentos. Isso porque Deus é ardiloso. Nos termos próprios do jogo e do cassino. O cassino é Deus, ele é quem determina quem vence o jogo. Não se pode ter a esperança de conhecer Deus ou os seus desígnios, mas ainda assim, ele pode estar por perto, e por isso é preciso ficar atento. Nos dias de hoje, quase não pensamos no Senhor, quase.>
Ou, se pensamos, é de um modo pequeno, prático, quando nos é conveniente. Quando a dor nos sufoca o peito ou acordamos com a coluna e o pescoço travados, quando perdemos alguém que amamos muito de modo estúpido ou repentino, quando pensamos em botar o cano de um revólver na boca e puxar o gatilho... Ah, você nunca pensou em fazer isso num momento de desespero, quando a última mola do fundo do poço não funciona mais?Tenho compaixão de quem nunca desceu as escadas que levam aos porões da alma. De quem nunca invejou a solidão eterna dos vampiros e nunca blasfemou contra a vida, contra o amor, contra a chuva incessante da inquietação existencial, contra Deus e os seus reverendos. Para esses, as portas do céu nem sempre estarão abertas, pois dão pouco trabalho ao Senhor. Sem os grandes pecadores, Deus morreria de tédio cercado por anjos loirinhos.Que delirante anseio, aliás, inspirou originalmente a ideia da existência de anjos? Um sonho que alguém teve? É mais razoável imaginar que Deus existe, porque sem alguns mistérios a vida perde a graça, mas daí a acreditar em anjos... Bem, minha mãe e todos os cristãos acreditam na ressurreição do corpo de Jesus, o filho de Deus. Também é um delírio. ***A noite não está nada tranquila. As palavras do Rei David no Salmo 23 não acalmaram a sua alma. Uma das características dessa solidão árida é que ele agora sempre acorda de madrugada. Fechou os olhos às 23h, dormiu até as 2 e meia, e depois caiu numa melancolia californiana. Uma insônia que mais parece um sonho acordado. Fica pensando em ondas em San Diego, Santa Bárbara e Baja. Inventando vidas que ele gostaria de ter vivido, imaginando absurdos sobre surfistas e Franz Kafka. Dessa vez, cismou de não haver nada de masculino nele. Lembrou-se de uma época em que já fora bom em algumas das coisas que sintetizam a masculinidade: bravatas, facilidade com esportes e com ferramentas elétricas, dissimulação de emoções. Agora, na cama e olhando o teto, achava que tudo o que havia de masculino nele estava sumindo.Na realidade, às 4 e meia, ele decidiu que era uma mulher. Tirou a camisa para examinar o peito no espelho do banheiro. Ficou convencido de que seus mamilos estavam ficando parecidos com os seios de sua ex-mulher, que não eram grandes coisas. Cada vez mais assustado, deixou cair o pijama e o que ele viu o fez desabar no tapete, sem querer acreditar. O seu símbolo de masculinidade havia desaparecido e, no lugar, surgira uma vagina. Definitivamente, ele estava ficando louco. Precisava ler o Salmo 91.***Você seria cúmplice da minha fé insana? Você dançaria comigo sobre o corpo do inimigo, nesta guerra santa contra os ímpios?***Que venha o fogo então, meu Senhor.>