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Kátia Borges
Publicado em 23 de janeiro de 2021 às 17:52
- Atualizado há 2 anos
A mulher dizia se conectar com Clarice Lispector. Sim, era uma vidente intelectual, literária, algo assim. Seu endereço, numa ruazinha no centro, fora passado por um desconhecido, desses que surgem na noite feito uma aparição. Estávamos num bar, na orla, bebendo entre amigos, quando ainda era possível sair de casa para ver o mar e zanzar por aí sem compromisso, pulando de evento em evento.>
Acho que conversávamos sobre prêmios literários ou a inutilidade da poesia. Naqueles tempos esses eram assuntos muito sérios, não havia pessoas morrendo por falta de oxigênio. Eu defendia apaixonadamente que o cotidiano é uma grande benção. Até os mais selvagens em espírito hoje concordam comigo. Felicidade é um dia da marmota em que tudo dá certo e o único risco que se corre é morrer de tédio.>
Bom, creio que foi nesse momento que o rapaz surgiu diante de nós, e não exagero. Ninguém realmente sabe de onde o cara veio. Em segundos, estava sentado em nossa mesa, pediu um copo de vidro vazio, como se fosse um dos nossos, e compartilhou sem cerimônia a cerveja gelada que já havíamos pedido. Até aí nada parecia muito estranho, só quem bebe nos bares de Salvador entende do que estou falando.>
É bem comum na madrugada ver essas aparições, plasmam-se a partir do intercâmbio de ideias entre as mesas próximas e, muitas vezes, dão em amizades para toda a vida. Outras até mesmo em paixões fortíssimas. Brigas por migalhas na divisão da conta. Também papos absurdos como aquele sobre a médium. Não lembro se um de nós perguntou o nome dele. Eu me confundo imaginando que era Olímpico.>
Tudo é possível no adiantado das horas, quando se está um pouco bêbado. Posso ter me enganado, mas creio que fui a única na mesa a levar aquela história a sério. Sou dessas que põem fé em tudo. Dessas que apostam na existência de extraterrestres e universos paralelos. Sim, sou dessas. Considerei possível então que houvesse mesmo uma mulher capaz de fazer contato mediúnico com Clarice Lispector.>
O amigo desconhecido havia tentado e tivera sucesso. Falava com orgulho e entusiasmo sobre a conversa com a autora de Água Viva. Todos riram quando ele contou que Clarice pediu um cigarro. E que ele tirou um do maço de Minister vermelho amassado que levava no bolso e o acendeu com seu isqueiro de plástico colorido. Não achei muita graça nisso, confesso. Não curto isso de zoar as fraquezas dos outros.>
Sei que você deve estar muito curioso a essa altura. Mas, afinal, o que a escritora diria de interessante a esse adorável bêbado esquisito? Um cara comum, perdido na alegria ingênua de que o mundo seguiria sempre o mesmo, quando tudo se adiantava rumo ao precipício logo adiante. Pensei de súbito que aquela farsa era demasiada até mesmo para mim, que ainda acredito em milagres e vi um de perto.>
Mesmo se Clarice em pessoa ou em espírito aparecesse em incerta noite de insônia, sei que ficaríamos mudas, uma diante da outra, porque nada havia a ser dito que não estivesse escrito em A Paixão Segundo G.H. Mas eu, que então me considerava uma criatura de alma bem formada, por via das dúvidas, anotei o endereço da vidente num guardanapo e o perdi no táxi, no caminho de volta para casa.>