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Mudança de estação se sente é na variedade das frutas. Chegam às bancas da cidade, anunciando a proximidade do Verão, umbus e seriguelas. Logo se vê por aí as cascas ásperas e verdes das pinhas, o vermelho-amarelo vivo dos cajus, as jacas maduras, debulhadas e acondicionadas em potes transparentes.
Uma paz indefinível invade o meu coração nessa época. Isso vem da memória, essa lavoura na aorta. Pequenas alegrias para dias sombrios. Brinca-se entre os lábios com agridoces trava-línguas. Mangas e melancias em baciada. Calendário que se saboreia, em sumo, no céu da boca. Lambuzadamente.
Virão colorir a cidade novamente, todas essas frutas, mesmo quando não houver quem as espere. Das árvores, às sacudidelas, goiabas e acerolas. O mesmo se diz da Primavera. E eu penso em Orã, a feia cidadela do romance A Peste, onde a estação das flores só se anunciava pelos cheiros nas cestas de vime.
“Uma primavera que se vende em mercados”, descreve Albert Camus. Ah, essas cidades de natureza indiferente. A luminosidade independe da contemplação dos olhos que acaba por ferir. Em A Náusea, quando falta pouco para partir, Roquentin vê que Bouville choverá do mesmo modo em sua ausência.
Mas, como escrevem bonito, esses dois meninos, Sartre e Camus. Como somos tolos ao medir o mundo por nossas curtas réguas. Quanta vaidade inútil. As montanhas da Chapada já existiam e existirão sem nós, sem mim. Também assim, as canções de Joni Mitchell. Todos os livros que se lê, que li.
Nada na natureza detém o seu curso. Só os humanos tentam se agarrar às suas coisas, tão mimados quanto sonsos. Sejamos justos. Permanentemente tontos do girar girar girar do mundo, só nos resta mesmo buscar algum amparo, um ponto sólido de apoio. Trocar de carro todo ano, por exemplo.
Lembro quando experimentei jabuticaba. Havia uma árvore no quintal de uma casa, primeira vez que visitava a Chapada, aniversário de 40 anos. A casca de um vivo escuro e roxo, ao ser partida, esparramou a polpa branca e doce e ácida em minha boca. E tudo em seu gosto se assemelhou a um estrondo.
Havia o sabor da terra ali, em algum ponto, e, ao mesmo tempo, o cheiro que sobe da terra molhada. Como se Deus, ou um alquimista meio zonzo, quisesse representar/materializar o significado de petricor em um fruto. Mas, talvez, fosse apenas o que em mim mudava. Em paz indefinível, e de um outro modo.