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Da Redação
Publicado em 4 de dezembro de 2022 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Nunca fui de andar em bando. Na escola, costumava ler no intervalo das aulas, enquanto os colegas desciam juntos para o pátio. Cresci do mesmo modo, muito na minha. Certa vez, num curso de extensão, fui a primeira a alertar sobre um incêndio. Estava sozinha, lendo algum livro, quando senti o cheiro da fumaça.>
Olhei para cima pela janela e pude ver as primeiras chamas dançando no ar com estardalhaço bem no andar acima. Catei minhas coisas e fui até a lanchonete avisar aos outros. Todos correram apavorados pelas escadas, em busca de seus pertences, enquanto as sirenes do corpo de bombeiros já zuniam na esquina.>
Naquela noite, ficamos alguns minutos, do lado de fora do prédio, sem acreditar nos estragos. Um dos alunos comentou depois sobre a calma absoluta com que dei a notícia de que o local estava pegando fogo. Todos riram. Por alguns minutos, pensei sobre o que teria acontecido se eu chegasse na cantina aos berros.>
Talvez fosse melhor ter ido embora em silêncio, deixando cada um entregue ao próprio destino. Corresponder ao que se considera normal nunca foi meu forte, confesso. Cedo aprendi que a fofoca, sobretudo a mais ferina, é a alma do sucesso no convívio social. Chega ao extremo do “falem mal, mas falem de mim”.>
Que estranhas são as coisas desse mundo, onde não esculhambar os outros é considerado sinal de pedantismo. E como deve ser cansativo vigiar maldosamente a vida alheia. A natureza inteira festeja a diversidade e o silêncio. É assim que ela se blinda contra nós. Agora mesmo, enquanto escrevo, observo passarinhos.>
Que será que conversam na pausa entre os voos? Talvez sobre como os humanos são tolos, compromissados com inutilidades, enquanto a vida some sob seus pés. “Viu o fulano?”, diz um deles. “Está entretido em achar saídas para manter o emprego, sem saber que não haverá tempo sequer de pagar os boletos do mês”.>
O outro passarinho gargalha. Sombriamente. Como só as aves sabem fazer, desde que Edgar Allan Poe escreveu O Corvo. De vez em quando, alguém critica meu alheamento aos mecanismos básicos do convívio social. Tudo bem, respondo. Ser meio esquisita, não andar em bando, até que pode ser útil em caso de incêndio.>