Crônicas de supermercado

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  • Colunista Kátia Najara

Publicado em 31 de julho de 2023 às 10:41

Tinha uma mania: observar o comportamento das pessoas nos supermercados da vida. Suas idades, de quanto tempo dispunham, se pesquisavam preços, se liam rótulos, que tipo de percurso faziam, se interagiam, mas principalmente o que colocavam em seus carrinhos – uma coisa “me diga o que comes e te direi quem és”.

Era incrível quantas coisas poderia supor, quantas crônicas de vidas alheias flutuavam pela sua imaginação. Perdia-se naquela greta de tempo onde não há relógio nas paredes; enchia e esvaziava o carrinho como pretexto para alcovitar aquelas pessoas - já nem tão estranhas assim depois de quinze minutos de perseguição, digo observação - pelas portas de suas despensas e geladeiras.

Quando apertava-lhe a fome pedia um risole sem emoção da vitrine da lanchonete com uma lata de coca-cola, sem perder de vista a vítima da vez. Quando as asas de sua imaginação levavam-lhe a lugares mais excitantes desviava rapidinho da rota da vida alheia até o refrigerador de cervejas e começam ali mesmo uma festinha discreta e particular que poderia durar do tempo de uma até o seu recorde de quatro latinhas a estufar-lhe bexiga e humor.

Para não despertar a atenção dos seguranças espalhava-se por todo tipo de supermercados da cidade, dos mais populares aos mais metidos a besta, o que ampliava ainda mais a sua fauna e repertório cronístico. Tornara-se obstinada profissional, e tamanha era a obsessão, felizmente consciente, que chegou a levar o assunto ao divã.

Observava que a grande maioria seguia o roteiro pré-determinado - que prioriza supérfluos e mais caros – distraídas e sem maiores contestações. Justamente por isso interessava-se sobremaneira por aquelas pessoas que mudavam a rota e começavam o seu zigue-zague de lá para cá. Claramente tinham alguma consciência política, carregavam suas próprias sacolas de pano, começavam pelos hortifruti e, mais ágeis e saudáveis, não hesitavam em dobrar os joelhos para conferir os produtos de acesso mais difícil, por isso mais baratos.

Já os mais corpulentos, tinham muitas vezes o hábito de escorarem-se nos carrinhos aproveitando-se do benefício de suas rodinhas para deslizarem lenta e mais facilmente por entre os seus corredores de sempre - aqueles que alimentam os vícios e tentam tapar buracos de sua existência com imensas garrafas plásticas de coca-cola, barras de chocolate barato, muito pão branco, mussarela duvidosa e embutidos mais ainda. Para sentirem-se mais saudáveis arriscam às vezes um iogurte. Grego com essência de baunilha, claro.

Era tão boa na coisa que desdobrava-se do corpo para observar o movimento das pessoas de cima em planta baixa, quando constatava que algumas delas, de tão distintas em suas escolhas tinham pequenas chances de terem os seus caminhos cruzados mesmo em tão limitado quadrado.

Alcoólatras “sociais” eram arroz de festa nos supermercados. Especialmente os que não se apercebiam de sua condição, mas ao chegarem partiam logo em linha reta para as cervejas geladas, e até o caixa teriam acumulado várias latinhas vazias, pelo menos um pack de 6, e um vinhozinho para esses dias frios, vai. Essas conhecia muito bem, por ser uma delas. E ainda que tentem ser discretas revelam-se pelo inconfundível tsssssssss da latinha sendo aberta. Muitos destes e destas aliás, nem faziam compras, mas iam ao mercado com intuito único de beberem cerveja gelada pelo melhor preço possível, ali escoradinhos nas mesinhas altas de stand by para ver a banda passar. Esses podem ser vistos no caixa de bochechas e olhos rosados passando apenas latinhas vazias.

E havia sempre a leitura facílima do semblante dos enamorados, com seus olhos brilhantes e ausentes, aquele ar de riso safado que morde o lábio inferior, aquele corpo flutuante. Já sabia o que haveria no carrinho antes mesmo de abaixar os olhos: um bom vinho, um bom queijo, um bom chocolate, no mínimo. Esses não se demoravam com suas compras certeiras e pontuais, até porque tinham compromisso de amor logo mais.

Mas tinha imenso carinho mesmo era pelos carentes. Aqueles que do nada puxavam assunto - fosse a carestia, uma ajudinha para ver o preço, a decadência do estabelecimento e a comparação com o mais novo e bem melhor, até um nível de intimidade de troca de receitas e até questões familiares. Pelo pouco que estas pessoas depositavam no carrinho, era-lhe claro que as compras eram pretexto para a fuga da solidão - percebia comovida.

E havia ainda os pedintes de leite Ninho, os pequenos ladrões de chicletes, os adolescentes comprando Dreyer para beberem no estacionamento, os funcionários exauridos passando a bolacha recheada de morango no caixa da colega para matar a fome; os que escolhem a comida pelo folheto do concorrente; os que preferem comer pouco mas não economizam em papel higiênico, sabão em pó e amaciante; os acumuladores sozinhos na fila escondidos pelos seus três carrinhos de compras que nunca vão caber na despensa; crianças fazendo as piores escolhas, e um sem-fim de histórias de vida que se cruzam todos os dias pelos corredores dos supermercados da vida.

Por isso cuidado, meu bem! E sorria, porque você está sendo filmada!