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O protagonismo feminino, velado para distraídos, é uma pancadaria de antagonismo aos personagens masculinos ora brutos, ora babacas, ora inseguros demais
Kátia Najara
Publicado em 8 de setembro de 2024 às 05:00
Pode não parecer, como na própria história da humanidade, mas na minha cabeça, a série de televisão americana O Urso - que se tornou quase uma lição de casa para cozinheiras/os e empresárias/os da gastronomia pelo mundo afora - tem protagonismo feminino.
Contudo, como ainda manda o figurino, quem aparece em primeiro plano no cartaz oficial é o personagem central: um chef estrelado e transtornado por estresse pós-traumático em conflito com o fantasma do irmão suicida, da mãe bipolar nível extremo (a esplêndida Jamie Lee Curtis), e com o primo egoico e brutamontes no controle do restaurante da família, que por motivos óbvios, vai de mal a pior.
A missão do heroi (em sua cabeça) é transformar a espelunca no melhor restaurante das galáxias. Para isso, deixa as luzes da ribalta da altíssima gastronomia da capital e volta para o mais profundo do seu interior.
Compondo ainda a ala masculina tem o primo bobão faz-tudo que é super legaus porque é bobão e faz tudo (o único chef na vida real infiltrado no elenco); o chef carrasco que orgulha-se em dizer que os seus métodos tiranos foram fundamentais para o alcance das estrelas do pupilo (esquizofrênico); o cozinheiro velha-guarda em transe geracional que só queria continuar fazendo sanduíches; e para salvar a pátria, um confeiteiro tão sensível e delicado quanto grande e pesado.
O LUGAR DAS MULHERES NA COZINHA
O protagonismo feminino, velado para distraídos, é uma pancadaria de antagonismo aos personagens masculinos ora brutos, ora babacas, ora inseguros demais, ora doentes demais, ora suicidas, ora só burros mesmo. Aquela hora em que fica claro que tem mulher na direção dando seus recadinhos apesar do tom de "mas no fundo no fundo todos eles são legais".
As melhores performances da série são marcadamente femininas, coisa de caso pensado, uma vez que estamos falando de uma escalação que conta não apenas com a já mencionada e extraordinária Jamie Lee Curtis (no auge das suas rugas em close macro), como também ninguém menos do que a fabulosa Olivia Colman - no papel da mais respeitada chef entre todas e todos, que chegou lá sem perder a ternura jamais lembrando no seu discurso que "as pessoas podem até esquecer dos pratos que comeram mas nunca se esquecerão das pessoas por trás dele" - reforçando a tônica da série.
Notório também que uma jovem atriz negra de 28 anos não apenas interprete um dos papeis mais importantes da série, como também dirija um dos episódios que lança luz e lupa sobre a delicada história de uma das personagens que é "apenas" mais uma cozinheira de canto de fogão, que como todo mundo, tem uma história não menos importante e que conta muito - ao contrário do que quase sempre se pratica.
Ayo Edebiri interpreta Sydney, uma jovem chef de sentidos infalíveis, muito bom senso, ética, generosidade e sobretudo uma enorme dose de inteligência emocional para lidar com os altos níveis de transtornos dos mais diversos que assombram as cozinhas profissionais (não que ela também não esteja sujeita).
Há ainda a irmã romântica e cuidadora, gravidíssima, tentando manter o controle e remendar laços afetivos no meio do caos; a namorada ex-gorda e quatro-olhos da infância que não tem medo de amar; a ex-mulher que teve a coragem de se separar para ser feliz, mas que insiste em nutrir com o ex um novo jeito de amar. Todas elas deixando reticências para suas histórias pessoais tão interessantes quanto qualquer outra.
INEGOCIÁVEL
Entre as histórias de vida e a realidade da rotina na cozinha em seus muitos fracassos e glórias (mais fracassos que glórias), há boas dicas para a vida.
A mais valiosa para mim é a lista de coisas inegociáveis traçada pelo chef num certo momento da vida quando resolve focar e seguir à risca o seu intransigente projeto do restaurante perfeito.
Me fez pensar no tanto de concessões que fazemos todos os dias para satisfazer e agradar as outras pessoas para tentarmos escapar do julgamento, como se isso fosse possível.
Sim, as concessões são regra de convivência social, mas qual o seu limite? Quais as consequências do desequilíbrio dessa balança? Até que ponto abandonamos o que somos, pensamos e desejamos em função do outro?
É quando a poderosa (e gênia) chef vivida por Olivia Colman resolve pendurar a dólmã no auge da carreira porque só queria voltar a ser Andrea.
O convite a essa altura é irresistível: já fez a sua listinha de inegociáveis? Não sei você, mas eu dei pause na hora para pegar caderno e bic.
CADA MINUTO CONTA
É só na segunda camada que reside a parte prática, a dor e a delícia da cozinha profissional - do prazer orgásmico de montar uma cozinha novinha em toda a sua burocracia, seus rituais de preparo, o frenesi do cotidiano e o gosto bom do sucesso, até o caos e a ruína física e psíquica na vida da pessoa.
No último episódio da terceira e última temporada disponível por enquanto, uma outra reflexão bacana, quando na última noite de funcionamento de um restaurante, ao se despedir da cozinha, a equipe se vê parada e em silêncio diante da frase motivadora CADA MINUTO CONTA (que sempre esteve cravada ali na parede sob o relógio) como quem a lê de fato pela primeira vez e se pergunta: PRA QUEM?