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A pressão das elites e da mídia resultou numa portaria que proibiu a exibição de clubes de costumes africanos com batuques
Nelson Cadena
Publicado em 16 de novembro de 2023 às 05:00
A imprensa baiana não tolerava conviver com os desfiles dos blocos afros e afoxés que surgiram a partir de 1895, ou seja, no décimo primeiro ano do desfile oficializado por decreto. Toda a imprensa, conservadora, liberal, alternativa. Até o jornal A Coisa, em cujo corpo redacional figurava Manoel Querino, protagonista da festa, presidente do bloco Pândegos da África, destacava o modismo de exaltar a África, mas ponderava: “o enfadonho tlin, tlin, tlan, de teus bárbaros instrumentos, pode ter muito valor, ser muito apreciado nos candomblés, mas aqui, a quem procura distração, alegria, maltrata os ouvidos, aborrece, causa tédio”. Condenava as imitações que denominava de “exaltações africanistas” e definia os imitadores como “macaquitos seminus ataviados de búzios, rufando tabaques”.
O Jornal de Notícias, de Aloísio de Carvalho Filho, em 15 de janeiro de 1901, desconstruía os afoxés: “Começaram, infelizmente, desde ontem, a se exibir em algazarra infernal, sem espírito nem gosto, os célebres grupos africanizados de canzás e búzios que, longe de contribuírem para o brilhantismo das festas carnavalescas, deprimem o nome da Bahia com esses espetáculos incômodos e sensaborões” e cobrava pulso firme das autoridades: “É bom, ainda uma vez, lembrarmos que não seria má a proibição desses candomblés nas festas carnavalescas”.
Em 1903 o mesmo jornal lamentava as suas pregações em vão: “O Carnaval deste ano, não obstante o pedido patriótico e civilizador... foi ainda a exibição pública do candomblé” e, preocupado com o que os sábios austríacos de passagem em Salvador poderiam relatar nos seus diários de viagem, lamentava o sucesso de público dos desfiles de negros e lhe parecia inconcebível que desfilassem no mesmo espaço (Rua Chile) dos grandes clubes. E ainda no seu lamento, concluía: “a triste nota de nossa rebaixada civilização, tornando festas como essa, tão agradável em outras cidades, em verdadeiros candomblés”.
O candomblé era um dos pontos de convergência das elites baianas para condenar os blocos afros e afoxés. Incomodava o desfile e incomodavam os ensaios. O candomblé não era legítimo, a sua prática ocorria na clandestinidade, assim como os preparativos para o desfile oficial. O jornal Cidade de Salvador perguntava às autoridades, acerca dos ensaios do bloco Chegada dos Africanos, desde setembro, na Rua da Mangueira: “Quem dá a licença”. E indagava dos leitores: “Me digam, pelo amor de Deus, quais são os toques que precisam de ensaios de seis meses, qual a dificuldade, quando eles já destros nisso, desde o berço”.
E desconstruía os figurinos: “roupas mal-arranjadas, sem camisa” e seus figurantes “suando como o diabo” e ponderava sobre o desconforto que causavam à vizinhança: “Ora, isto é um incômodo que já não pode, além dos toques ainda há uma certa cantoria em tom desagradável que só a dinamite”. E, em 1904, um grupo de senhoritas da sociedade, irritadas com os batuques, vaiaram um dos afoxés que desfilavam na Rua Chile. Foi o último ano de desfile dos afros e afoxés, nesse espaço. A pressão das elites e da mídia engajada nesse discurso excludente resultou na portaria da Secretaria de Segurança, de 24/02/1905, assinada por Francisco Antônio de Castro Loureiro, cujo artigo 1º explicitava “não será absolutamente permitida a exibição de clubes de costumes africanos com batuques”.