O bê-á-bá das muriçocas

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  • Nelson Cadena

Publicado em 24 de setembro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Se você se dispôs a ler esta crônica é porque, convenhamos, não tem o que fazer - tempo de sobra para assuntar a vida e intrigas sobre pernilongo - ou sofreu, como eu, graves traumas que já superados me credenciam a requerer com a certeza de que serei agraciado, um título de Honoris Causa de alguma das universidades pátrias, quem sabe do exterior? Meu doutorado em muriçocas.

Não reivindico o título por capricho e sim pelo amplo conhecimento adquirido ao longo da vida, retribuído com mais de meio litro de sangue, talvez um litro, de mau grado doado à espécie. E, em especial, pelas minhas recentes descobertas com todo o rigor que a ciência exige, após longa e precisa observação, dignas de figurar nas melhores e mais conceituadas publicações científicas do planeta. A primeira: as muriçocas, como os felinos e outras feras das savanas, são territoriais; a segunda, e a de maior impacto: elas ressuscitam. Isso mesmo, não é devaneio. Já, já, disserto a respeito.

Fui apresentado à espécie no Rio Solimões, nos idos de 1973, lá ostentando o tenebroso nome de carapanãs, denominação de origem indígena para assinalar um anofelino sarado, três vezes maior do que as muriçocas às quais estamos habituados neste rincão de Deus. As vi, vindo na minha direção, em rigorosa formação kamikaze, uma esquadrilha pronta para ser abatida, é muito atrevimento atacar de frente. Outras, menos vorazes, nos atacaram à noite, pelas costas; aprendi a primeira lição nos três dias de travessia de barco entre Benjamim Constant e Tefê: o melhor remédio para evitá-las é ficar embaixo do mosquiteiro, antes do sol se pôr.

Aprendi ao longo da vida outras tantas lições e algumas pratiquei no limite da insanidade: em Saint Laurent du Maroni assumi a posição de defunto, no coreto da praça, velado por 12 espirais de mosquito-colis, seis de cada lado; em Paramaribo, no galpão da igreja que abrigava os sem teto, tomei banho de mangueira, um a cada hora, pelo menos, e me deitei molhado, uma e outra vez; em Berlinque, queimei minhas roupas para fazer a tal da fumaça preta e em uma noite de impiedoso e desalmado ataque, me enterrei na areia; no porto de Macapá me cobri com as peles de jacaré, fedorentas e ainda não curadas, que supostamente espantavam as muriçocas e acordei impregnado de um cheiro que ainda hoje me persegue.

Em Kourou, a base especial da Guiana Francesa, enxerguei a luz. Desenvolvi as minhas primeiras e mais criativas técnicas facínoras, no quartinho do quintal da casa paroquial onde a “generosidade” do padre me confinou, junto com uma centena de selvagens carapanãs. Os abati quase todos, tive o insight da toalha molhada com água e sabão, arremessada contra a parede, a cada impacto grudavam três a cinco insetos. Aprimorei a técnica, anos depois em Salvador, com panos de chão, e desenvolvi o método de assistir à TV com a mão ensaboada para grudar qualquer intrusa a me tirar do sério. Foi aí, confesso, que pensei em reivindicar o meu doutorado na matéria.

Desejo, este, que me pareceu viável quando descobri a territorialidades dos pernilongos. Após me doar como refeição, em noites de emboscada, percebi que pernoitam e alongam as pernas, sempre no mesmo lugar, no mesmo cantinho, na mesma parede. Isso é marcação de território. Ou não? Surpresa grande, contudo, foi descobrir que ressuscitam. A muriçoca abatida levantava voo minutos depois. Assisti algumas ressureições, juro, e já me preparava para reivindicar o almejado HC, quando o estraga-prazeres de meu filho abateu minha tese: “deixe de ser besta, pai! O inseticida que você usa, a base de água, molha leve; quando seca, a muriçoca voa de novo”. O argumento não me convenceu. Continuo em observação.