Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Nelson Cadena
Publicado em 30 de novembro de 2023 às 05:00
Carnaval é território. E não adianta me lembrar que território é um conceito animal, que isso já sabemos desde quando Eva mordeu a maçã. Rita Lee nos mostrou uma faceta desse território: “Amor é divino/ Sexo é animal/ Amor é Bossa Nova/ Sexo é Carnaval”. >
Mais de um século antes da música referida, o circunspecto Diário de Notícias, na cobertura do primeiro ano do Carnaval oficial (1884), legalizado por decreto, nos brindou com o editorial intitulado: “Adieu la Chair” (adeus à carne), um desejo não correspondido nestes 140 anos de festa, na sua pretensão de um desfile organizado, préstitos de foliões com carros alegóricos, para o público apenas admirar e aplaudir.>
O primeiro território do carnaval baiano foi a Avenida Sete, antes de ter esse nome. O Clube Carnavalesco Cruz Vermelha nasceu de uma iniciativa de jovens frequentadores do Clube Caixeiral, mais tarde denominado Comercial. Já o Clube Fantoches da Euterpe nasceu de jovens liderados pelo industrial Luiz Tarquínio, estabelecendo sede na rua Paulo Autran (entre a Carlos Gomes e a Avenida Sete, trecho da Rua do Rosário), próximo também do Clube Caixeiral. Talvez por isso o Clube foi durante décadas parada obrigatória do préstito com a Rainha do Carnaval.>
Esse foi o território, digamos, da organização do desfile dos dois grandes clubes “pioneiros”, que estrearam no Carnaval. O território deles era extensivo à Barroquinha, onde o Cruz Vermelha tinha seu galpão e à Graça, onde se confeccionavam as fantasias do Fantoches. Extensivo, ainda, a praça do Mercado do Ouro, nos cochos e camas de areia improvisados para os bovinos e asininos do desfile, finalmente ao território da Rua Chile onde desfilaram durante os três dias de folia.>
Coloquei aspa na palavra pioneiros, para não desmerecer as agremiações que já desfilavam antes do Carnaval oficial, sem a imponência e luxo dos carros alegóricos e sem um tema-enredo: Saca Rolhas, Fenianos, Comilões, Aponões e Reprovados. A Rua Chile foi o território do desfile oficial de 1884, extensivo à Avenida Sete, até São Pedro. Os jornais registraram além do Cruz Vermelha, Fantoches e Saca Rolhas, Os Abolicionistas, Mutamba, Clube das Petas e o Congresso de Vulcano.>
O território da Barroquinha tornou-se alternativo, excludente. Se firmou a partir da concentração de alguns blocos que ali tinham galpões e na ambientação financiada com contribuições do comércio da área, a partir da primeira década do século 20. O Largo de São Miguel era o ponto alto dos festejos. O território acabou sendo alternativo dos blocos de pobre, marginalizados pelos organizadores do Carnaval.>
A proibição por decreto dos afros e afoxés, em 1905, estendeu o território para os subúrbios da cidade. Os grupos não desapareceram, perderam esplendor e foliões para apreciar, “sumiram” aos olhos da mídia e da polícia. E o território da folia um dia se estendeu até o Campo Grande e mais tarde até os bairros de maior densidade demográfica e à Barra. Alguns tornaram-se sinônimos de território carnavalesco, chocadeiras de blocos: Garcia, Periperi, Santo Antônio, Liberdade, Pelourinho, Massaranduba, Preguiça, Tororó.>