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O fetichismo e o pecado capital na gastronomia

Não é absolutamente fantástico estar ali vivendo aquela ‘experiência’, gostoso ou não? Porque gostoso é o fetiche

  • Foto do(a) author(a) Kátia Najara
  • Kátia Najara

Publicado em 2 de novembro de 2024 às 11:00

Marx fala n'O Capital sobre o Fetichismo da Mercadoria. Fetichismo da etimologia da palavra, que se refere a feitiço, objetos de culto de povos primitivos, associados a magia e mistério.

É sabido que transformamos absolutamente tudo em mercadoria. Todas as maneiras de nos relacionarmos com o mundo e com as pessoas passam pelo brilho e forma enigmática de coisas que representam projeções de partes perdidas de nós mesmos e que agora a gente quer restituir, mas tem que comprar.

Na condição de cozinheira, e não filósofa ou psicanalista, não há como não trazer esse olhar fetichista para a mercadoria

gastronômica, até como um jeito de observar a distância entre a comida do conforto e a comida do desejo.

CONFORTO

Veja bem o percurso do alimento: primeiro era tão somente uma necessidade de sobrevivência, tanta que os primatas curvados que andavam de quatro que fomos foram alongando a coluna para colher frutos até conseguirem equilíbrio apenas sobre dois pés. Aquilo não foi nada fácil. E foi além.

Sanada a mais recôndita necessidade primitiva da fome e reconhecido ali aquele prazer do conforto, ou conforto do prazer, ele tomou literalmente o gosto pela coisa e até fogo inventou, que era para fazer churrasco.

DEPOIS VEIO O PRAZER

O selvagem humanizou-se. Mostrou para a capivara, para a onça, para o javali, e

principalmente para a macacada resistência, que recusou-se a aderir aos bons modos, que era melhor, mais refinado e mais inteligente que eles.

Nada de comer no chão com formiga entrando pelo furico; elevaria-se em bancos de pedra e pau, comportaria o alimento em cuias, que seriam apoiadas no que conhecemos hoje como mesas, e também não mais seriam obrigados a comer com as mãos, mas conduzindo o alimento à boca com gravetos que viraram garfos e facas.

A forma da cuia, a forma da mesa, a forma dos gravetos, a forma dos objetos encantados criados por nós mesmas para suprir necessidades, a forma (beijo, Kant). É na forma das coisas que o fetichismo gastronômico começa também a ganhar forma.

Lapidou-se o bicho, e o gosto pela comida,

agora cozida e temperada tornou-se de necessidade básica ao maior dos prazeres, comparado apenas ao gozo sexual. Um prazer bestial que também haveria de ser aperfeiçoado para modos mais aceitáveis de um comportamento social.

Dos gregos e troianos aos franceses do século 17 a coisa ficou ali "humanizada" entre os bacanais e vomitórios, até que Luis XIV entra em cena todo Rei-Sol, pavão, fe-chan-do no salão, absoluto e absolutista, maquiadérrimo, no perucão, de meia fina e salto alto, e berra: Cheeega! Haverá regras. Chama Carême!

Depois foi só Brillat-Savarin provar por A+B em seu Fisiologia do Gosto a influência da gastronomia para o sucesso dos negócios, felicidade conjugal e coisas que tais - entre trufas negras e pernas de vitelas com três pombos velhos e vinte e cinco lagostins - que estava registrado em cartório o nascimento do fetichismo gastronômico.

DESEJO, NECESSIDADE E VONTADE

De lá pra cá esse fetichismo só ganhou contornos ainda mais brilhantes e espetaculares com os fenômenos de industrialização e coisificação do capitalismo selvagem, promovendo essa crescente e eterna alienação e descolamento do que somos, e a consequente projeção do buraco que fica nas coisas que inventamos, repito. E basta tê-las, que nem precisam ter gosto.

ILUSIONISMO E SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

Cientes desse magnetismo que a forma e o símbolo exercem sobre o desejo, o Mercado, tal qual o criamos - como uma entidade de vida própria que "aquece" e "reage" - usa e abusa de subterfúgios ilusionistas, que lamentavelmente distraem e confundem os nossos sentidos de suas funções primárias, com a promessa de experiências exclusivas e inusitadas como nunca dantes.

E nessa carência bêbada do que perdemos, projetada no ilusionismo da mercadoria que podemos ter (lembra dos espelhinhos que encantaram a nós indígenas?), é que perde-se o literal gosto das coisas. Um gosto que também esvai-se junto com a natureza esvaída e desvalida.

E atraídas pelo fetiche fazemos a reserva - o que já nos alimenta com uma sensação de pertencimento àquele lugar tão especial e concorrido. A recepção do maitre até a "sua" mesa enche um pouco mais o estômago com a sensação de importância. A luz indireta e dramática sobre as flores frescas te levam para dentro de uma cena de "Meia Noite em Paris". E tudo isso é realmente muito bom.

O chacoalhar da coqueteleira faz percussão sobre a bossa ambiente. E lá vem ele, o drink, esfumaçante, mágico e furta-cor. Uau! - sussuram os olhos brilhantes.

Só aquele palavreado bonito de descrição dos pratos já inebria. A entrada chega dramática em caixa preta sobre pedras pretas para contrastar com as delicadas flores comestíveis sobre a comida que se encerra em única bocada. Mas não é absolutamente fantástico estar ali vivendo aquela "experiência", gostoso ou não? Porque gostoso é o fetiche.

O principal chega com ares de mistério sob tampa em meia-esfera que quando levantada libera um fumacê que ao see dissipar revelando finalmente o Jardim Encantado da Sociedade do Espetáculo. Bravo!

Se estava gostoso? Talvez nem se lembre. Foi tanta coisa, tanto estímulo, tantas sutilezas metafísicas, que só ficou mesmo um "brilho eterno de uma mente sem lembranças".

Katia Najara é cozinheira livre, consultora e gestora executiva em projetos gastronômicos @katia_najara

"Texto da citação"

Nome do Autor da Citação

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