O que é um pai?

Dentre todas as grandiosidades, há o encontro bobo, a torcida de futebol em comum

Publicado em 13 de agosto de 2023 às 05:00

Meu avô paterno teve dezesseis filhos. Isto é o sertão, meus amigos. O meu pai é o caçula, então quando ele nasceu, a sua irmã mais velha já estava casada. Dessa forma, quando o meu pai foi se casar, com seus vinte e poucos anos, o meu avô Adelmo já era um senhor bem mais velho. É o que justifica ter sido difícil para mim ver o patriarca vivo. Mas há um ponto que nos conecta: no primeiro 9 de agosto dos anos 80 que coincidiu com o Dia dos Pais, meu avô morreu. No segundo 9 de agosto dos anos 80 que coincidiu com o Dia dos Pais, eu nasci. Eu imagino a ambivalência de sentimentos do meu pai possui em relação à data que também lhe homenageia. Entre morte e nascimento, entre ser filho e ser pai.

O que é um pai senão uma ambiguidade, uma mistura de opostos, o corte e a redenção, a fatalidade e a vida? É uma junção de polos, uma dualidade em movimento: falta e presença, força e brandura, compreensão e silêncio. Não à toa, o nosso cancioneiro popular tem duas grandes canções com o mesmo entendimento. Em Pai, Fábio Jr. consagrou o verso que mais parece a de um hino: “Pai, você foi meu herói, meu bandido”. Roberto Carlos, em Meu querido, meu velho, meu amigo, também passeia pelas antíteses: “Esses seus cabelos brancos, bonitos, esse olhar cansado, profundo/Me dizendo coisas, num grito, me ensinando tanto do mundo...”

O que é um pai para um filho? O pai é uma espécie de mitologia. Além dessa dualidade, quase Apolo, quase Dionísio, ora Júpiter, ora Saturno, ele oferece um conjunto de imagens e de pistas sobre o nosso próprio destino, sem que entendamos exatamente o quê. Os mitos são um conjunto de histórias que, nas palavras do filósofo Heráclito, seriam como o Oráculo de Delfos: “nem diz, nem oculta, mas dá sinais”. Ou seja, não revela diretamente, nem esconde por fim, mas deixa rastros, indica vias que bem podem ser o nosso caminho ou o mais distante. Na tragédia grega, quando Édipo enfrenta o pai sem saber que era seu pai e vai ocupar o seu trono, ou seja, vai assumir o posto que já foi de quem o fez, ele precisa enfrentar um enigma. O oráculo anuncia a famosa frase: “Decifra-me ou devoro-te”. Os vestígios da história de nosso pai são também as peças de encaixe do nosso mistério.

Para um filho rapaz frente ao pai, basta às vezes um só resquício para que se crie dali uma história inteira. Algumas fotos, acontecimentos, marcos, que se tornam um painel de conexões e possibilidades para um mergulho. Ou mesmo no pai que se vê todos os dias, de onde os gestos fluem para imitação, de onde as ações se encaminham para um modelo, há nele, em certos momentos, uma sombra, um espaço através do olhar para onde nós, filhos, trilhamos o enigma. “O que é mesmo ser um homem?”, temos a grande vontade de perguntar. “Até onde os sentimentos confusos e trancados de um homem podem ir?”. E entre tentar saber e não saber jamais, construímos nossa própria resposta que é o nosso caminho.

Não é o que pede o poeta Vinicius de Moraes? “Meu pai, dá-me a tua pequena, chave das grandes portas, dá-me a tua lamparina de rolha, estranha bailarina das insônias... Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.” Sim, o pai nos larga descalços em nosso destino, nem que seja para cumprir talvez uma forma de destino próximo inteiramente, como ocorreu com o primeiro filho emblemático, o Édipo-Rei. Às vezes a grande volta que um de nós circunda é encontrar diante de si (ou em si, o que é quase a mesma coisa) aquilo do qual nos afastamos em nome do pai e contra o pai. Descobrir que somos mais parecidos do que imaginamos, revelar em nossa vida um desafio tão parecido pelo qual ele passou, um desafio que o fez às vezes ser tão imperdoável ou incompreensível para nós, e termos a iminência na sensação de sermos em um mesmo elo.

Dentre todas as grandiosidades, há o encontro bobo, a torcida de futebol em comum, a piada corriqueira, as manias cômicas, em que tudo parece e é extremamente simples. Veja, tudo também pode ser simples, sem maiores existências, reverências, pelo menos por tantos momentos. A vida pode ser só besta também, a vida pode ser só uma flanela passada sobre o carro com um balde perto do pneu em uma tarde de domingo, em que a nós cabe lavar os pneus. Sem pensamentos, só os dois pares de olhos sobre a bola na tela de TV, só uma troca de livros no aniversário. Nesses momentos chega até a pergunta: “Qual é a grande pergunta mesmo? O que se tem mesmo para saber?”. E esta simplicidade é também parte da ambivalência, é também uma face dos mistérios.

Saulo Dourado é escritor de livros de ficção e professor de filosofia em colégios de Salvador