O que faz o mundo avançar

A tolerância é um princípio que ainda precisa ser melhor absorvido pela humanidade, do mesmo modo que o exercício da compaixão

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  • Paulo Sales

Publicado em 28 de abril de 2024 às 05:00

Assisti recentemente ao trecho final de uma antiga entrevista concedida por Bertrand Russell à rede BBC. Nele, o filósofo e matemático britânico é perguntado a respeito do que diria às futuras gerações. No plano intelectual, Russell respondeu: “Pergunte-se apenas quais são os fatos e qual a verdade que eles carregam. Nunca se deixe desviar, seja pelo que quer acreditar ou o que em tese traria benefícios sociais”. Em suma, ele pede que seus descendentes remotos sejam puramente racionais e imparciais ao se debruçarem sobre um tema ou estudo filosófico.

Já no plano moral – e é essa a reflexão que realmente me interessa –, Russell afirma: “O amor é sábio, o ódio é tolo. Neste mundo, que se torna cada vez mais interconectado, temos de aprender a nos tolerar uns aos outros. Temos que aprender a lidar com o fato de que algumas pessoas dizem coisas que não gostamos. Só dessa forma poderemos viver juntos. E se vamos viver juntos, e não morrer juntos, temos de aprender a ser caridosos e tolerantes, o que é absolutamente vital para a continuação da vida humana neste planeta.”

É um discurso repleto de boas intenções, formulado por um intelectual pacifista que sorveu como poucos o seu tempo. Mas que hoje talvez soe banal e pueril, em meio a bombardeios que matam civis aos milhares e manifestações de ódio que se propagam num mundo muito mais interconectado que o dele. Vale lembrar, porém, que Russell vivenciou cenários ainda mais brutais ao longo do século 20 e dos seus 98 anos de existência. Viu duas guerras mundiais com suas tempestades de fogo. Viu o Holocausto, viu os Gulags, viu Hiroshima e Nagasaki. Viu a quase certeza do triunfo da barbárie sobre a civilização.

As perguntas que me faço são: haverá outra solução, além da preconizada por Russell? Ou deixaremos que o ódio coletivo se torne hegemônico, trazendo a reboque um manancial de crueldade? Tenho a impressão de que estamos assistindo, inertes, à chegada de tempos sombrios que imaginávamos extintos. As democracias liberais, que pareciam tão sólidas, correm já algum risco de implodir, corroídas por seus próprios mecanismos de autopreservação. O terrorismo, seja de Estado ou praticado por grupelhos fortemente armados, permanece uma ameaça.

Woody Allen uma vez afirmou: “Acho que o traço mais marcante da existência humana é a desumanidade do homem com o homem. Olhando de longe, se fôssemos observados por gente no espaço, acho que a conclusão seria essa. Não acho que eles ficariam deslumbrados com a nossa arte ou com tudo o que realizamos. Acho que ficariam de certa forma assombrados pela carnificina e pela burrice”. As gerações futuras, em tese mais evoluídas, nos enxergarão da mesma forma que Allen nos enxerga? Ou serão ainda piores que nós? Haverá gerações futuras?

A tolerância é um princípio que ainda precisa ser melhor absorvido pela humanidade, do mesmo modo que o exercício da compaixão. Nesse ponto, carrego certo otimismo: assim como alguns indivíduos evoluem ao longo da vida, a civilização como um todo também será capaz de evoluir. Santa ingenuidade, dirão alguns – e provavelmente estarão certos. Basta um livro como Sapiens, de Yuval Noah Harari, para nos debruçarmos sobre o abismo incontornável da nossa trajetória, assentada em sangue pisado e repisado, a prosseguir claudicante entre avanços e retrocessos. Como se a pedra que erguemos a todo custo montanha acima estivesse sempre pronta a despencar.

“O amor é o único mecanismo de sobrevivência”, já profetizou Leonard Cohen. Portanto, se queremos permanecer por aqui, é imperioso preservá-lo. Mas, na mesma canção, Cohen diz: “Eu vi o futuro, irmão: é assassinato”. Até quando ficaremos à mercê desse maldito paradoxo? Para cada Revolução dos Cravos teremos sempre uma Guerra Civil Espanhola? Para cada Gandhi, um Pol Pot, para cada Mandela, um Pinochet?

Vi outro dia o filme Eu, Capitão, do italiano Matteo Garrone. É um tanto maneirista, desse tipo de produção que recorre a obviedades mirando o Oscar. Mas mostra a matéria-prima de que são feitos os heróis: compaixão, generosidade, inconformismo. Sedoux, o adolescente senegalês que sofre os horrores da diáspora africana rumo ao eldorado europeu, enfrenta episódios de brutalidade extrema. Até o momento em que, sem qualquer experiência em navegação, se vê obrigado a guiar pelo Mediterrâneo um velho barco avariado, atulhado de homens, mulheres e crianças. Seu senso de dever faz com que não desista e se sinta responsável por aquelas pessoas. São esses heróis anônimos que impelem o mundo a avançar. Ainda que lentamente, ainda que sempre com o risco de ir ao fundo.