O STF decidiu que, em família composta por duas mulheres, uma é a mãe e a outra é o pai

"Cinco dias corridos é o que temos, no Brasil, com o nome de ‘licença paternidade’. Um negócio ridículo e que não muda porque ninguém jamais viu uma passeata de pais exigindo o direito de cuidar dos próprios filhos"

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 16 de março de 2024 às 11:00

Hoje, lembrei da história de um brasileiro conhecido meu que, morando em um desses países que alcançaram nível suficiente de civilidade, passou das maiores vergonhas da vida. Foi assim: ele trabalhava numa grande empresa e, certo dia, um colega anunciou que sairia para meses (não lembro quantos e não vou mentir) de licença, com o exclusivo objetivo de cuidar do filho nascido há pouco tempo. A mãe do bebê voltaria a trabalhar fora e era a vez dele se dedicar exclusivamente ao filho e ao lar. Pois, ao se despedir do colega, meu conhecido disse, na língua deles, algo como ‘agora vai ficar de babá, né?’, achando que seria uma boa gracinha.

O silêncio que todos fizeram no escritório e a impossibilidade do colega de entender a ‘piada’, ainda constrangiam meu conhecido (uma espécie de ‘tio do pavê’), muitos anos depois, quando ele me contou essa história. O pai gringo, felicíssimo por poder cuidar do neném, repetiu algumas vezes ‘eu sou o pai’, enquanto o brasileiro balançava a cabeça afirmativamente, enrubescido e sem conseguir dizer mais nada. Toma, papudo. Não é em todo lugar que paternidade é um superficial passeio no parque.

Cinco dias corridos é o que temos, no Brasil, com o nome de ‘licença paternidade’. Um negócio ridículo e que não muda porque ninguém jamais viu uma passeata de pais exigindo o direito de cuidar dos próprios filhos, nem nos primeiros meses depois do nascimento. Provavelmente, acham chato. Devem dar graças a deus pela liberdade de viver normalmente, enquanto mães se viram com noites mal dormidas, amamentações, adaptações e reconstruções necessárias. Também, evidentemente, com a perda de espaço no mercado de trabalho. Para a maioria deles, tá tudo massa, gostoso, normal.

Pode até existir esse cara incomodado, mas nunca – em quase 50 anos de vida – soube de um homem que reclamasse desse lugar. Se reclama, não se organiza ou, pelo menos, não faz o barulho necessário para mudar as coisas. Então, minimamente, se omite nesse ‘não estar’ coletivo e toda mulher já fique ciente de que qualquer maternidade – em parceria com homem - é solo, em algum âmbito, por mais sutil. É aquele papo de 'estrutural'. Mesmo aquelas com jardim, cachorro e marido oficializado. As separações tão comuns, ‘antes do primeiro ano do bebê’, sempre me pareceram o desfecho prático da conclusão de que ‘antes só do que mal acompanhada’. Pra mim são, inclusive, esperadas.

Nenhuma novidade na relação entre gêneros, neste país. O que esperam de nós é, em primeiro lugar, dedicação a todos os trabalhos de cuidado, principalmente de homens de qualquer idade, crianças, doentes e idosos. É limpar, organizar, lavar, alimentar e afins. Avanços, além desse espaço, sempre foram na base da porrada. Em torno dessa expectativa são construídas as leis, inclusive. Que sempre são o retrato de cada sociedade e não o contrário. É por isso que, agora, acho que o STF (Supremo Tribunal Federal) fez uma grande, heteronormativa, homofóbica e machista cagada que, talvez, seja a nossa cara.

Vou explicar.

Tudo começou com o caso de uma servidora pública municipal, mãe não gestante, cuja companheira, trabalhadora autônoma, com quem convive em união estável homoafetiva, engravidou por meio de inseminação artificial. Em recurso ao STF, o município de São Bernardo do Campo (SP) questionou a decisão de Turma Recursal do Juizado Especial da Fazenda Pública de São Bernardo do Campo que garantiu a licença maternidade de 180 dias à servidora. Ou seja, à mãe não gestante. Tá acompanhando? Pois bem.

Pra encurtar a conversa (você pode ler todos os passos do processo no site do Tribunal), depois de não sei quantas discussões e votos, nessa quarta (13) saiu a decisão do STF que é assim: ‘A mãe servidora ou trabalhadora não gestante em união homoafetiva tem direito ao gozo de licença maternidade. Caso a companheira tenha utilizado o benefício, fará jus à licença pelo período equivalente ao da licença paternidade’. O entendimento da Corte vai valer tanto para servidoras públicas quanto para trabalhadoras da iniciativa privada que têm contratos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

É um avanço? De certa forma, sim. Mas, pelo menos dentro da expectativa que tenho de mundo, tá longe de ser suficiente. É pouco e chega do jeito errado. Mexer nessa pauta e decidir de forma tão preconceituosa, em 2024, pra mim, é imperdoável. Veja, não seria novidade no planeta se o STF apenas pensasse assim, em relação a casais homo ou heteroafetivos: ‘Nasceu um bebê e ele é de responsabilidade do casal. Então, galera, vamos juntar esses (ainda poucos, insuficientes) dias de ‘licença pra cuidar do bebê’ e disponibilizar para o casal que vai administrar do modo que achar melhor, porque não é da nossa conta a rotina familiar de ninguém’.

(Evidentemente, a mãe gestante precisaria de uma licença médica, até se recuperar do parto ou da cesárea e é um absurdo que contem como licença maternidade aqueles dias em que muitas de nós ainda precisam ser cuidadas. Normalmente, por outras mulheres, claro.)

Pronto, estava resolvido dentro dos parâmetros da civilidade. Mas, não. O STF decidiu que, em família composta por duas mulheres, uma é a mãe e a outra é o pai. Um pai tradicional brasileiro, vale observar. Para quem cinco dias bastam. Que tá quase ‘nem aí’ para a vida doméstica, que acha cuidar de filhos um trabalho menor. Que apenas passa pela casa e, eventualmente, pode até reclamar do barulho que todo bebê faz ou da falta de sexo porque a mulher tá exausta. A questão é que esse ‘pai’ tradicional brasileiro, sendo mulher, duvido demais que se contente com o papel secundário. Mulheres homoafetivas não são imitações de homens, você sabe, né?

Se bem conheço meu gênero, a maioria delas não vai topar abrir mão de todas as noites insones e tantos outros momentos em que o vínculo ‘mãe e filho’ se faz. Porque a ideia é ter parceria e não ‘cair fora’ desse trabalho. É estar acompanhada. É apoiar e ser apoiada. O saudável é não haver hierarquia entre mãe e pai, pai e pai nem mãe e mãe. É ombro a ombro, lado a lado. Os cinco dias só são suficientes pro pai tradicional brasileiro, esse cara cafona e anacrônico no qual – assim acredito – nenhuma mulher quer se inspirar. Ou seja, o STF – assim como meu conhecido - passou uma vergonha danada. A questão, agora, é ver se, coletivamente, percebemos o absurdo ou achamos graça da piada.

(Ah, detalhe: você sabe que no STF só há uma mulher, né? Era só mais isso mesmo. Obrigada.)

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo