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A matéria fugidia dos anos

Parafraseando Paulo Francis, nós despontamos para o anonimato. Ou ao menos a maioria de nós

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 27 de dezembro de 2025 às 05:00

John Fante tem um livro chamado 1933 Foi um Ano Ruim. É mais um daqueles seus romances autobiográficos repletos de ternura e melancolia sobre jovens pobres que sonham escapar da miséria e do frio do Colorado. Num contexto diferente e mais pessoal, eu poderia dizer que 2025 foi um ano ruim. Áspero, difuso, envolto em perplexidade e incompreensão diante da perda de pessoas queridas e do declínio progressivo de alguém que amo. Foi o ano em que me dei conta, como nunca antes, do quanto a matéria vida é fina.

Perto de completar 56 anos, começo a sentir o peso exercido pelo compositor de destinos sobre meus ombros: dores articulares, perda de massa muscular, ligeiros esquecimentos. Logo eu, que tinha datas e nomes na ponta da língua. São um prenúncio, uma amostra grátis do que vem pela frente, enquanto o apreço pelo conhecimento que sempre preconizei parece se esfarelar no mundo contemporâneo. É mais ou menos aquilo que Henri Salvador já cantava em Jardin d’Hiver: “Os anos passam, longe é a tenra idade, ninguém pode nos entender”.

O ano que vai embora trouxe apreensão, sobressalto e exaustão, sobretudo no primeiro semestre: dias no hospital, conversas com médicos, leituras interrompidas, livros se acumulando na estante à minha espera; noites de olhos grudados no teto acompanhando o desenlace da aurora, sabendo que precisaria levantar logo. Mas também foi um ano de afetos fortalecidos, horizontes desbravados e momentos recompensadores.

É impossível, de qualquer modo, tentar encerrar cada período de 365 dias em compartimentos estanques, sem ligação com aqueles que o antecedem e sucedem. Ciclos não se iniciam ou se encerram a cada ano-novo. Mesmo porque, à medida que envelhecemos, os anos cada vez mais se parecem uns com os outros, que nem uma correnteza espessa e opaca. O que os diferencia é o que fazemos de valoroso em cada um deles: uma viagem enriquecedora, uma ascensão profissional, uma nova relação amorosa.

Sempre me pergunto qual a razão desses balanços que fazemos a cada final de dezembro. Quando nos vestimos de branco, bebemos espumante quente e desejamos votos de paz e prosperidade a todos que surgem à nossa frente, estamos repetindo um ritual que celebra a chegada de algo que já conhecemos intimamente. Permaneceremos os mesmos, seja no trabalho, nas relações sociais, nas resoluções não levadas a sério, na independência financeira que não virá com a Mega da Virada. Continuaremos cheios de boletos a pagar, insatisfeitos com o salário, irritados com o país claudicante em que vivemos.

Mas o fato é que quase todos necessitamos, ainda que de maneira inconsciente, estabelecer marcos temporais. Aquele ano em que saímos de casa, que o mestrado foi concluído, que o apartamento foi quitado. Eu tenho cá os meus e lembro particularmente de dois: 2000, quando nasceu minha filha, e 2003, quando morreu meu pai. São acontecimentos definidores de quem sou, feitos de plenitude e pesar, como na vida de qualquer um. É dessa matéria fugidia que são feitos os anos.

Lembro de minha adolescência: cada ano encerrava uma descoberta específica, que podia ser tanto uma epifania sexual, uma paixão eternamente fugaz ou um pontapé no coração juvenil. Os anos passavam com vagar, cindidos pelos dois períodos de férias escolares. O mundo se revelava em toda sua apoteose de alegrias, temores, hesitações, triunfos e decepções. Baseado em uma impressão desconectada da realidade, eu cria pertencer a uma geração iluminada. Só faltou combinar com os adversários. A vida real não admite esses devaneios.

Parafraseando Paulo Francis, nós despontamos para o anonimato. Ou ao menos a maioria de nós. A vida cotidiana se assemelha aos contos de John Cheever, que tenho lido por esses dias. Existências comuns, com suas banalidades e aspirações, suas tragédias e frustrações, se desfazendo em desencanto, escolhas equivocadas, perda de dignidade e, em alguns casos, de princípios. Gente honesta ou quase isso sofrendo golpes do destino ou de vigaristas, enquanto os anos escapam. That’s life, como diz a canção de Sinatra. E mesmo assim nós fazemos questão de prosseguir.