A vida passa como uma avalanche

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  • Paulo Sales

Publicado em 23 de setembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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“Tudo o que sempre quis foi ficar escondido, protegido, resguardado; me enfiar numa toca com a quentura de um útero, e ficar encolhido ali, abrigado do olhar indiferente do céu e dos efeitos nocivos do ar tão rude. É por isso que o passado representa um refúgio para mim: corro ao seu encontro, na maior ansiedade, esfregando as mãos, tentando me livrar do frio presente e do futuro mais frio ainda.”

Nesse e em outros trechos do romance O Mar, John Banville fala com particular acuidade da necessidade de, em algum momento da vida, contemplarmos o percurso já percorrido. É quando nos damos conta de que nossa existência pouco difere da dos cachorros e gatos: ela passa como uma avalanche. E durante esses segundos que duram toda uma vida, o que sentimos – intercalada por muitos momentos de felicidade genuína e outros de absoluta tristeza – é tão somente incompreensão. Como disse Cortázar: “Vaidade de crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves”.

Pousar os olhos no passado talvez seja a única maneira de não pensarmos no que vem pela frente, quando vem. É um território aconchegante, morno e seguro, onde não estamos expostos às intempéries do presente. Às vezes, em hospitais públicos ou praças abandonadas, observo os velhos. Seus tremeliques da boca, seu olhar fixado em algum ponto obscuro e a impressão de que desde sempre foram assim: velhos. Quanta ingenuidade. Naquela expressão meio atordoada provavelmente perdura um último lampejo de permanência.

Lembro agora do que disse Remy, o outrora bon vivant que padece de um câncer incurável em As Invasões Bárbaras, filme de Denys Arcand, lamentando o fim dos prazeres de que desfrutou: “É paradoxal, quando envelhecemos é que nos apegamos à vida. Você começa a subtrair: me restam 20 anos, 15 anos, 10. Quando sabemos que é a última vez que fazemos alguma coisa. É a última vez que compro um carro. A última vez que vejo Gênova, Barcelona.”

Envelhecer não é um processo fácil, e costuma trazer a reboque uma profusão de lamentos e imprecações. Impossível não sentir fisicamente, e sobretudo emocionalmente, a pressão do compositor de destinos, como bem definiu Caetano, sobre nossos ombros, nos vergando como a velhos mastros exauridos de tanto cruzar oceanos. Recordamos as decisões equivocadas – um casamento desfeito, uma palavra não dita – enquanto somos invadidos por essa massa espessa de memória que nos impulsiona rumo ao epílogo, junto com sonhos cada vez mais escassos. Vinte, trinta, quarenta anos são pouco mais do que horas, e de tempos em tempos, quando acionamos algum gatilho, nossos fantasmas surgem com toda disposição para nos assombrar.

Volto ao Mar e a Banville, que inspirou esta crônica meio sem sentido sobre um sentimento cada vez mais assíduo nas águas revoltas da minha mente: “Talvez a vida toda não passe de uma longa preparação para o momento em que devemos deixá-la…”