Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.
Paulo Sales
Publicado em 16 de setembro de 2019 às 05:00
- Atualizado há um ano
Na semana passada um amigo meu se casou. É um sujeito simpático, gentil e inteligente, como parece ser seu marido. Marido? Em outros tempos, essa interrogação traria embutidos um sorriso irônico de canto de boca e um pensamento maldoso. Porque em outros tempos havia em mim algo que fui aos poucos extirpando, como se me livrasse de roupas quentes e pesadas de inverno usadas num verão tropical. Roupas que provocavam uma sensação de desconforto e sufocamento.
Mais do que uma saudável atitude humanista, despir-se de preconceitos tornou-se um ato de resistência no tempo sombrio em que vivemos. Nesse nosso estágio primitivo de civilização, assistimos perplexos a um desfile de horrores, estimulado oficialmente por uma visão de mundo tosca, estulta, refratária à alteridade e à empatia. Isso num país que espanca e mata homossexuais com desconcertante naturalidade. Abriu-se a porta do esgoto, que despeja uma enxurrada de ódio contra gays – e também contra negros, pobres, mulheres e índios. Enfim, contra o que é diferente, numa apologia deliberada da brutalidade.
É uma covardia descabida e um confronto desleal, porque atinge pessoas em geral fragilizadas, vulneráveis, confrontadas desde a infância com a própria “diferença”. E que, quando não conseguem se afirmar, acabam confinadas à amargura e ao desalento. Profundamente arraigado, o preconceito é cevado sobretudo na adolescência, quando ganha uma dimensão quase insustentável. Lembro, por exemplo, da repulsa que senti ao saber que meu ídolo de juventude, o escritor Jack Kerouac, tivera inúmeras relações homossexuais. Logo ele, o arquétipo do macho destemido, que se lançava nas estradas da América e se envolvia com mulheres irresistíveis. Que decepção.
F. Scott Fitzgerald tem uma frase de que gosto muito: “Aos 18 anos, nossas convicções são colinas de onde contemplamos o horizonte; aos 45, são cavernas em que nos escondemos”. Louvo a mim mesmo por ter evitado que as convicções da colina, felizmente sólidas como uma brisa, me acompanhassem até a caverna da maturidade. Elas foram se diluindo enquanto me lançava à vida real, quando precisamos abandonar tolices derivativas para consolidar nosso olhar particular sobre o mundo. O preconceito foi uma dessas tolices, deixada de lado à medida que sabia da existência de grandes homens, grandes mulheres e, o mais importante, grandes amigos e amigas cujo denominador comum era o desejo e o amor por pessoas do mesmo sexo.
Hoje, o preconceito – não apenas de gênero, mas também de cor e de classe – me entristece, me entedia, me exaspera. O bem maior eu consegui: minha filha cresceu sem manifestar qualquer traço de intolerância. Sua integridade nesse sentido me redime e me alivia. Não passei adiante a torpeza da minha ignorância juvenil. Por tudo isso, quando fico sabendo de uma notícia como a do casamento do meu amigo, eu abro um sorriso. E nele se esgotaram por completo os estoques de ironia e maldade.